pele10 Credito: Kleber Sales/Correio Braziliense Credito: Kleber Sales/Correio Braziliense

Pelé 78 anos: Nelson Rodrigues e a primeira vez em que o aniversariante do dia foi chamado de Rei

Publicado em Esporte

Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, comemora 78 anos nesta terça-feira. Revirando meu baú de memórias do maior jogador de todos os tempos, encontrei a lista jogo a jogo de todos os gols do craque de Três Corações (MG). Minha curiosidade era saber quando Pelé atingiu a marca de 78 bolas na rede na carreira. Ele já era tão bom que, em um só jogo, fez quatro — os gols de número 75, 76, 77 e 78. A vítima? O América-RJ, em 25 de fevereiro de 1958, pelo extinto Torneio Rio-São Paulo.

A exibição de gala na vitória por 5 x 3 é um marco na história de Edson Arantes do Nascimento, do personagem Pelé, como ele costuma separar, do futebol brasileiro e do jornalismo esportivo. Pela primeira vez, alguém ousou juntar três letras e dar a Pelé o eterno título de rei. O responsável pelo batismo do adolescente de 17 anos e 8 meses foi um craque das letras — um tal de Nelson Rodrigues — na crônica. A realeza de Pelé, publicada na revista Manchete Esportiva em 8 de março de 1958 e reproduzida na integra a seguir aqui no blog.

Neste 23 de outubro de 2018, feliz aniversário, Pelé! Vida longa ao Rei do Futebol. E minha reverência ao histórico texto genial de Nelson Rodrigues, com ilustração do amigo craque Kleber Sales.

 

A REALEZA DE PELÉ*

 

Nelson Rodrigues

 

Depois do jogo América x Santos, seria um crime não fazer de Pelé o meu personagem da semana. Grande figura, que o meu confrade [Albert] Laurence chama de “o Domingos da Guia do ataque”. Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: — dezessete anos! Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de quarenta, custo a crer que alguém possa ter dezessete anos, jamais. Pois bem: — verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis. Em suma: — ponham-no em qualquer rancho e a sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor.

O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: — a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento. E o meu personagem tem uma tal sensação de superioridade que não faz cerimônias. Já lhe perguntaram: — “Quem é o maior meia do mundo?” Ele respondeu, com a ênfase das certezas eternas: — “Eu.” Insistiram: — “Qual é o maior ponta do mundo?” E Pelé: — “Eu.” Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir. Mas o fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção que ninguém reage, e todos passam a admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as posições. Nas pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o incomparável Pelé.

Vejam o que ele fez, outro dia, no já referido América x Santos. Enfiou, e quase sempre pelo esforço pessoal, quatro gols em Pompeia. Sozinho, liquidou a partida, liquidou o América, monopolizou o placar. Ao meu lado, um americano doente estrebuchava: — “Vá jogar bem assim no diabo que o carregue!” De certa feita, foi até desmoralizante. Ainda no primeiro tempo, ele recebe o couro no meio do campo. Outro qualquer teria despachado. Pelé, não. Olha para a frente, e o caminho até o gol está entupido de adversários. Mas o homem resolve fazer tudo sozinho. Dribla o primeiro e o segundo. Vem-lhe, ao encalço, ferozmente, o terceiro, que Pelé corta sensacionalmente. Numa palavra: — sem passar a ninguém e sem ajuda de ninguém, ele promoveu a destruição minuciosa e sádica da defesa rubra. Até que chegou um momento em que não havia mais ninguém para driblar. Não existia uma defesa. Ou por outra: — a defesa estava indefesa. E, então, livre na área inimiga, Pelé achou que era demais driblar Pompeia e encaçapou de maneira genial e inapelável.

Ora, para fazer um gol assim não basta apenas o simples e puro futebol. É preciso algo mais, ou seja, essa plenitude de confiança, de certeza, de otimismo que faz de Pelé o craque imbatível. Quero crer que a sua maior virtude é, justamente, a imodéstia absoluta. Põe-se por cima de tudo e de todos. E acaba intimidando a própria bola, que vem aos seus pés com uma lambida docilidade de cadelinha. Hoje, até uma cambaxirra sabe que Pelé é imprescindível na formação de qualquer escrete. Na Suécia, ele não tremerá de ninguém. Há de olhar os húngaros, os ingleses, os russos de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de ninguém. E é dessa atitude viril e, mesmo, insolente, que precisamos.

Sim, amigos: — aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos adversários uns pernas de pau. Por que perdemos, na Suíça, para a Hungria? Examinem a Fotografia de um e outro time entrando em campo. Enquanto os húngaros erguem o rosto, olham duro, empinam o peito, nós baixamos a cabeça e quase babamos de humildade. Esse flagrante, por si só, antecipa e elucida a derrota. Com Pelé no time, e outros como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma dos vira-latas. Os outros é que tremerão diante de nós.

 

*Manchete Esportiva, 8/3/1958, sobre Santos 5 x 3 América, em 25/02/1958, no Maracanã, pelo Torneio Rio-SP. Foi a primeira crônica de Neldon Rodrigues sobre Pelé — e a primeira em que o jogador foi chamado de Rei.