Quem viu de perto Pep Guardiola sacar várias soluções da cartola durante 10 anos acaba acumulando repertório suficiente para tentar reinventar, por exemplo, o posicionamento de uma promessa da base do Flamengo como o questionado centroavante Lincoln, de 19 anos.
Algo me diz que Domènec Torrent e o auxiliar Jordi Guerrero buscaram inspiração no Barcelona da temporada 2008/2009 para apostar em Lincoln aberto pelas pontas em vez de ser o homem de referência no ataque rubro-negro. Foi assim no empate com o Palmeiras, em São Paulo, no último domingo, e na goleada por 4 x 0 desta quarta-feira contra o Independiente del Valle, no Maracanã, que antecipou a passagem do atual campeão continental às oitavas de final. Com a bola, Lincoln formava um 4-3-3 ao ao lado de Gabigol e Pedro. Sem ela, fazia a composição da linha de quatro (ou de três) no meio de campo no 4-4-2/4-2-3-1.
Guardadas as devidas proporções, óbvio, o papel de Lincoln nas últimas duas partidas lembra um pouquinho o de Henry e/ou Eto’o na conquista da Uefa Champions League de 2009 contra o Manchester United, em Roma. Ambos eram goleadores, homens de referência no ataque das seleções da França e de Camarões à época. Em condições normais de temperatura e pressão também seriam sob a batuta de Guardiola. No entanto, aquele Barcelona exigia um pouquinho de sacrifício coletivo para dar passagem ao então jovem Lionel Messi. Henry e Eto’o toparam fazer o serviço sujo.
O francês atuava aberto na esquerda, como se fosse ponta. Eto’o ocupava o papel de centroavante, mas tinha liberdade para inverter papel com Messi. Àquela altura, o argentino ensaiava para virar um badalado falso camisa 9. Aparentemente, um trio de ataque formado por Henry, Eto’o e Messi tinha tudo para dar errado. No entanto, brindou o clube catalão com vitória por 2 x 0 sobre o então campeão Manchester United, de Cristiano Ronaldo e Alex Ferguson, na final da Champions League.
As funções de Henry e de Messi abertos nas pontas esquerda e direita, respectivamente, eram fazer a diagonal em direção aos meias — Xavi e Iniesta à época — ou ao homem de referência no comando do ataque, ou seja, Eto’o ou Messi quando havia inversão. Consequentemente, Henry e/ou Messi abriam o corredor para a passagem dos laterais.
A dinâmica foi parecida nas exibições do Flamengo contra Palmeiras e Independiente del Valle. Lincoln aberto na esquerda, Gabigol na direita e Pedro posicionado como centroavante quando o time estava com a posse da bola. Sem ela, Lincoln alinhado com Thiago Maia, Gerson e Arrascaeta. Com a saída de Gabigol e a entrada de Bruno Henrique, Lincoln foi mais uma vez para o sacrifício. Passou a atuar aberto na direita. Para mim, ele foi bem nas duas funções e até marcou o primeiro gol.
Há um toque (e um truque) europeu na tentativa de resgatar Lincoln e encontrar soluções emergenciais para o Flamengo em meio ao surto da covid-19 no elenco. A ideia não é nova nem exclusividade ou sacada genial dos discípulos de Guardiola. José Mourinho usava Eto’o aberto na direita na Internazionale campeã da Champions League em 2010 para tê-lo a lado de Diego Milito e Pandev na frente. Basta lembrar a exibição épica do camaronês contra o Barcelona nas semifinais, quando a Inter eliminou a trupe azul-grená dentro do estádio Camp Nou. Comprometido, virou praticamente lateral.
O técnico italiano Massimiliano Allegri sacrificou o centroavante Mandzukic aberto na ponta-esquerda na Juventus para favorecer Higuaín no comando do ataque da Juventus em uma das temporadas de sucesso da Velha Senhora. Em vez de gols, o excelente croata passou a ser o responsável pela pressão e o acompanhamento da linha ofensiva do adversário até a linha de fundo, quando era preciso. Formava linha de três no 4-2-3-1 de Allegri com Cuadrado e Dybala., todos responsáveis por dar suporte ao centroavante Higuaín. O quarteto foi um sucesso na temporada 2016/2017.
Tite experimentou algo semelhante na Copa América de 2019. O ataque da Seleção Brasileira tinha Gabriel Jesus aberto na ponta-direita, Firmino no comando do ataque e Everton Cebolinha na extrema esquerda. Gabriel Jesus entendeu a adaptação e fez belíssimas partidas na semifinal contra a Argentina e na conquista do título contra o Peru. Vale lembrar que a Bélgica surpreendeu o Brasil nas quartas de final da Copa 2018 com o alto, forte, veloz, goleador e com passadas largas Lukaku aberto na direita marcando e azucrinando a vida do lateral-esquerdo Marcelo.
O futebol moderno exige reinvenções e readaptações inclusive dos centroavantes. Não importa se eles são altos, pesados ou goleadores. Há espaço para esses caras fora da área, desde que sejam voluntariosos e estejam dispostos a atuar mais para o time e menos para si, como fez Lincoln no triunfo contra o Independiente del Valle. Jogou bem taticamente e foi recompensado com o gol que abriu o caminho para a classificação rubro-negra.
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