Quatro anos e meio depois de a Bélgica mandar o Brasil de volta para casa nas quartas de final da Copa do Mundo da Rússia em 2018, um craque das letras ameniza a dor da derrota por 2 x 1 com uma saborosa obra sobre a seleção definida por ele como a maior de todos os tempos.
Em entrevista ao Correio, Sam Kunti, um dos correspondentes da revista inglesa World Soccer, conta por que é apaixonado por aquele time de Félix; Carlos Alberto Torres, Brito, Piazza e Everaldo; Clodoaldo e Gérson; Jairzinho, Pelé, Rivellino e Tostão responsável pelo concerto de 4 x 1 contra a Itália no Estádio Azteca, no México. Sam morou no Brasil e tem ligações fortes com o país.
Depois de uma imersão não somente no campo do futebol, mas também da política, ele trata no livro sobre questões política como a influência da ditadura militar no escrete, a opção ideológica do técnico demitido João Saldanha pelo comunismo e o papel do sucessor Zagallo na confecção daquele timaço. Sincerão, Sam revela na entrevista a seguir ao Blog Drible de Corpo por que torceu pelo Brasil — e não pela Bélgica — no jogão disputado em Kazan nas quartas de 2018.
Quando surgiu a ideia do livro?
Assisti ao vídeo do gol maravilhoso de Carlos Alberto Torres na final contra a Itália pela primeira vez quando era criança. Mais tarde, entendi essa obra-prima. O jogo de construção requintado e a finalização deliciosa para sempre ressoam em mim. A intensidade cromática e as imagens granuladas eram vintage. Prendeu-me ao Brasil e à Seleção de 1970.
Quanto tempo durou a confecção?
É o trabalho da minha vida. Ligar para Piazza pela primeira vez em 2006, quando adolescente; conhecer Carlos Alberto Torres pela primeira vez dois anos depois, em Amsterdã, morando no Rio, em 2012, recém-formado da faculdade de direito. Eu cobri a Copa do Mundo, Olimpíada, Copa América, Libertadores e Mundial Sub-17 no Brasil. Expandi conhecimentos sobre o Brasil e entrevistei jogadores da Seleção de 1970. Você não pode entender um time de futebol sem conhecer o contexto e a sociedade em que ele está inserido.
Quais heróis de 1970 você entrevistou?
Falei com Ado, Leão, Baldocchi, Brito, Clodoaldo, Carlos Alberto, Dadá Maravilha, Edu, Gérson, Marco Antônio, Paulo Cézar Caju, Rivellino, Rogério Hetmanek, Roberto Miranda, Tostão, Jairzinho, Wilson Piazza e Zé Maria. Da comissão técnica, entrevistei o técnico Zagallo e Parreira. Conheci o Rei (Pelé), mas nunca tive oportunidade de entrevistá-lo!
A Seleção o apresentou ao Brasil?
Das praias imaculadas de Caraguatatuba, onde conheci a filha de Félix, a Batatais, a casa tranquila de Baldocchi, cruzei o Brasil, muitas vezes, em ônibus noturnos após uma refeição sonhadora em um restaurante Graal, à beira da estrada. No Rio, passei muitas horas em várias rádios conversando com Gérson, que, uma vez encontrado, virou tagarela. Na praia de Copacabana, joguei futevôlei com Jairzinho. Nós compartilhamos cervejas, o que o acalmou.
Difícil convencê-los a falar?
Minhas habilidades de persuasão foram testadas de várias maneiras. Brito estava sempre pescando e raramente atendia o telefone. Quando o fazia, muitas vezes depois de inúmeras tentativas por dia, às vezes fingia ser seu próprio filho. Nunca tive coragem de dizer a ele — que sua voz era única. Em Belo Horizonte, Tostão inicialmente não queria falar. Todos os jogadores vieram com suas próprias características — francos, otimistas, inteligentes, diplomáticos, joviais, introvertidos, odiosos, frustrados, generosos, gananciosos. Quase todos eram nostálgicos, se respeitavam e eram críticos do jogo moderno.
Quem foi mais acessível?
Talvez me aproximei mais do Jairzinho, no Leme. Celebrei os altos e baixos do Botafogo, também meu clube. Bebi caipirinha e discuti política com ele. Temos visões muito diferentes sobre o mundo. Eu comi com a família dele e netos. Voltaremos a nos encontrar após a pandemia. Isso cria um vínculo.
Por que acha a Seleção de 1970 a melhor das Copas?
O time, se não totalmente perfeito, era sensacional e cheio de talento. Foi, talvez, a última Copa em que o indivíduo ainda era mais importante que o sistema. O tricampeonato coroou o Brasil como mestre espiritual do jogo e Pelé cimentou seu lugar na galeria dos grandes. Era também o fim da era de ouro do Brasil. Ao mesmo tempo, com a chegada da tevê em cores em todo o mundo, o futebol tornou-se um fenômeno global.
O que mais o encanta naquela Seleção?
A ideia de que o futebol é apenas um jogo. Eles pertencem a uma época diferente, mas demonstraram repetidamente como o futebol pode mexer com a alma. Nesse contexto, com o pouso na lua um ano antes (1969), quase parecia uma vitória para toda a humanidade! Como disse Carlos Alberto Torres: “A nossa equipe fez ‘the beautiful game'”. Eles nos levaram de volta à nossa infância. Curiosamente, a maioria dos jogadores de 1970 diz que o Brasil de 1958 foi o melhor time de todos os tempos. Talvez, mas eles nunca desfrutaram do benefício da tevê.
Qual foi o papel do Zagallo?
Deixe-me reformular a pergunta: o Brasil teria vencido a Copa do Mundo sob o comando do João Saldanha? A formação 4-2-4 dele era demasiado aberta e pertencia a uma época anterior. Zagallo entrou e fez o que sabia de melhor: transformar a equipe em uma interação viva de si mesmo. Na Copa de 1958, ele subiu e desceu a ala esquerda para transformar a formação de 4-2-4 para 4-3-3. A equipe instantaneamente se tornou mais equilibrada. Zagallo queria esse equilíbrio novamente em 1970. Em um amistoso com a Áustria, as peças se encaixaram — Piazza mudou-se para o quarto zagueiro e Rivellino se tornou o terceiro homem no meio-campo. Zagallo nunca se cansou de dizer que queria fazer parte da história.
Quem era o jogador mais importante daquela Seleção?
Ah, o saudoso Carlos Alberto Torres costumava dizer que era o Gerson e quem sou eu para discordar do capitão? Pelé era a estrela-guia, o centro de gravidade e o gênio inigualável, mas Gerson era o jogador mais importante. Orquestrou o meio-campo e sempre quando o Brasil atacava a bola passava por ele primeiro. Sua visão e pé esquerdo eram inigualáveis. A final foi o seu momento de coroação. Ele era tão inteligente e criava espaço para si mesmo. Na final, os italianos não conseguiram marcá-lo. Isso essencialmente os fez perder a partida! Ele recuou para criar espaço. O gol dele foi uma beleza e dividiu a tarde em duas. Os italianos não podiam mais vencer.
Qual foi o capítulo mais saboroso de escrever?
Os capítulos sobre Saldanha, Dadá e Zagallo contam o momento político da época. O comunista, o jogador não político e o homem do establishment. O capítulo de Dadá chama-se “o vendedor” no meu livro. Ele foi selecionado para o Brasil depois que o general Médici o chamou (não há citação no registro, no entanto!). O perfil aborda a infância, quando a mãe dele se suicidou antes de ele se tornar um moleque e depois um delinquente. O futebol o salvou e se ele era um atacante muito bom no Atlético-MG, não era de classe mundial. Seguiu-se uma tempestade na mídia após os supostos comentários de Médici e, finalmente, Zagallo, sucessor de Saldanha, o selecionou. A importância de Dadá para a história do Brasil 70 é dupla: das margens ao estrelato. Ele representou o milagre brasileiro e foi apolítico, como a maioria de seus companheiros. A ditadura não o incomodava.
Há poucos livros sobre a Seleção de 1970…
Talvez seja mais atraente escrever sobre grandes derrotas do que sobre grandes vitórias. O Brasil escreve muito sobre 1950 e 1982, mas 1970 nem tanto. A literatura sobre o tri é muito limitada no Brasil e isso é surpreendente dado o status global dessa seleção. Espero que, nesse sentido, meu livro possa ajudar a preencher esse vazio.
Haverá versão em português?
A editora brasileira Grande Área está interessada no meu livro, então, dedos cruzados! Espero que o livro ofereça ao leitor informações e insights valiosos e que meu livro tenha feito justiça à seleção de 1970.
Ficou dividido entre Bélgica e Brasil em 2018?
A honestidade me implica dizer que torci para o Brasil naquela quarta-de-final. Eu estava na tribuna da imprensa e uma emoção muito conflitante se manifestou: para quem torcer? Minha nação natal ou o país que eu havia adotado. A Bélgica é um país profundamente corrupto e racista, não muito diferente do Brasil — então é difícil de se identificar com esses países. O treinador da Seleção, Tite, é progressista, então eu favoreci o Brasil.
Por que o Brasil perdeu a magia de 1970?
Ironicamente, a maior vitória do Brasil de todos os tempos — em 1970 — também foi o começo do fim. O Brasil nunca reproduziu esse tipo de futebol, com exceção de 1982. Os tecnocratas invadiram o campo. Era um reflexo da sociedade brasileira dos anos 1960. A ditadura militar deixou a administração do país nas mãos de tecnocratas sem rosto e eles também invadiram o esporte e o futebol. Eles mediam as coisas, tinham uma prancheta na mão. Não era mais o Brasil de Zizinho, mas o Brasil de Carlos Alberto Parreira e Cláudio Coutinho. A vitória do Brasil em 1970 foi profundamente tecnocrática. E até certo ponto essa ideia nunca foi abandonada. Até hoje, os Parreiras e outros não só sobrevivem, mas até certo ponto prosperam.
O que diz a sua bola de cristal sobre a Copa do Mundo?
Brasil e Argentina devem ser os favoritos, partidas invictas brilhantes, jogadores brilhantes. E ainda assim, acho que a Europa vai ganhar. O maior problema da América do Sul é que os times raramente jogam com os melhores times da Europa. Fazer isso uma vez a cada quatro anos é quase impossível. Claro que, para a evolução do jogo global, seria brilhante se a América do Sul ganhasse a Copa do Mundo. Já faz muito tempo!
O que esperar da Bélgica?
Bem, a geração de ouro da Bélgica já passou do seu pico. Parece que 2018 foi o auge. Desde então, os resultados foram decepcionantes na Euro 2020, bem como na Final Four da Liga das Nações. O gerenciamento de jogo de Roberto Martinez, bem como sua lealdade a jogadores comprovados, tornou-se prejudicial. Ao mesmo tempo, a Bélgica precisa de seus melhores jogadores para dar o melhor de si, Lukaku, Hazard, De Bruyne, Courtois… dadas todas as preocupações com a idade e a forma física, isso não vai acontecer no Qatar.
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