O que era (e o que virou) o Flamengo nas páginas de uma reportagem histórica de 2003 da revista Placar

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Revirando o meu baú em busca da minha coleção de revistas, encontro uma revista Placar de setembro de 2003. Se você, como eu, guarda essas relíquias, trata-se da edição 1.262. Uma chamadinha curta no canto superior direito da publicação resume o que era no início do século o Clube de Regatas do Flamengo — que pode terminar 2019 com quatro títulos. Ganhou o Estadual, está a dois pontos da taça no Brasileirão, é finalista da Copa Libertadores da América e disputará o Mundial de Clubes da Fifa se derrotar o River Plate no sábado, no Estádio Monumental, em Lima, no Peru.

A chamadinha dizia assim: “Saiba por que ninguém quer jogar na zona que virou a Gávea”. Acredite se quiser: apesar de toda a bagunça detalhada das páginas 40 a 43 na bela matéria dos colegas Patrick Moraes e Milton Trajano, o Flamengo foi vice-campeão da Copa do Brasil! Perdeu o título para o excelente Cruzeiro de Vanderlei Luxemburgo — aquele da tríplice coroa.

O texto expõe as mazelas do velho Flamengo. Em 12 de agosto daquele ano, faltou água no vestiário da Gávea. A Cedae, empresa responsável pelo abastecimento no Rio, havia cortado o fornecimento. A notícia se espalhou pelo mundo. O restante do cenário descrito pela reportagem apontava “salas de ginástica obsoletas, dependência que mais parecem fornos pela falta de ar condicionado, inadimplência com funcionários e fornecedores, falta de um centro de treinamentos, desrespeitos a horários e normas de conduta”. Recém-promovido ao elenco principal, o goleiro Julio Cesar chegou a comprar ar condicionado do bolso.

No campo do marketing, o programa Sempre Flamengo, que dava acesso a ingressos em todos os jogos do Brasileirão e direito a promoções no intervalo das partidas e a entrar com os jogadores atraiu míseras 75 pessoas. Dentro de campo, o Flamengo acumulava vexames no Sul: derrotas por 6 x 2 para o Paraná Clube, 4 x 1 diante do Athletico-PR e 5 x 0 com o Coritiba.

Na área econômica, ostentava a maior dívida do país entre os clubes de futebol. Devia dinheiro até ao doutor Sócrates, comprado pelo clube em 1986. Eram mais de 400 ações trabalhistas. Apesar da injeção financeira de US$ 80 milhões da ISL, a dívida passava de R$ 200 milhões, metade referende a impostos, FGTS e outros tributos sociais. Em 2002, o Flamengo pagava sete treinadores ao mesmo tempo: Carlinhos, Evaristo de Macedo, Zagallo, Carlos Alberto Torres, Carlos César, João Carlos e Lula Pereira. Todos havia treinado o time de 1999 a 2001.

Uma ação do Sindicato dos Funcionários de Clubes bloqueou a conta corrente do Flamengo por 18 dias. Ali caíam os depósitos do Clube dos 13, do patrocinador e das mensalidades sociais. Os pagamentos estavam atrasados havia dois meses. O time corria o risco até de perder o ônibus que conduzia a delegação devido a uma dívida com o fornecedor. O descumprimento da opção de compra do antigo Fla-Barra fez o arquirrival Vasco assumir o CT.

Hoje comentarista do grupo Globo, Caio detonou o clube ao trocá-lo pelo Grêmio. “Ninguém mais tem o desejo de jogar no Flamengo. Infelizmente, virou um clube com fama de mau pagador”. Astro do Brasiliense à época, Wellington Dias recusou um convite rubro-negro.

O ex-meia Alex, hoje comentarista dos canais ESPN, deu a declaração mais forte sobre o desmando no Flamengo. “Foram os três anos mais caóticos da minha carreira. Não havia cobrança, era uma zona. O treino acabava e um ônibus estava ali para levar todos à concentração. Você entrava e só havia quatro jogadores. O resto tinha ido no próprio carro e chegaria sabe-se lá que horas. Na hora do jantar, a mesma coisa: você olhava para o lado e não estavam todos. Chegava 11 horas da noite e seu companheiro de quarto ainda não havia chegado. Sem o mínimo de disciplina, não se vai a parte alguma”, criticou.

Quem lê a matéria de 2003 da Placar não acredita que, 16 anos depois, o clube tirou Bruno Henrique do Santos; Arrascaeta do Cruzeiro; Rodrigo Caio do São Paulo; Gerson da Roma; contratou Filipe Luís (ex-Atlético de Madrid); Rafinha (ex-Bayern Munique); e chegou a flertar com centroavante italiano Mario Balotelli. Ao menos por enquanto, os astros do Flamengo recebem em dia de um clube cada vez mais respeitado financeiramente. Construiu o Ninho do Urubu, administra o Maracanã em parceria com o Fluminense e virou a potência que os concorrentes sempre temiam quando diziam: “O dia em que o Flamengo se organizar…”.

Os possíveis três títulos nos últimos dois meses do ano podem decretar definitivamente a guinada na história do clube de 124 anos de história. E aí, quem sabe, a capa da Placar na virada do ano seja: “Saiba por que todos querem jogar no paraíso que virou a Gávea”.

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Marcos Paulo Lima

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