“Quem é o homem da relação?”; “Quem é a mulher?”; “Você gosta de homem ou de mulher? Não dá pra gostar dos dois”; “O que você tem aí embaixo?”; “Como você é na hora H?”. Perguntas como essa reforçam e aumentam esteriótipos e tabus que ainda permeiam sobre a sexualidade de pessoas LGBTQIAPN+. Cercada por normas heteronormativas e patriarcais, a padronização das relações segue um roteiro que nem sempre contempla pessoas que se relacionam com o mesmo gênero.
É o que sugere Rafael Braga, psicólogo clínico especialista em sexologia: “A criação cristã perpetua que as únicas relações corretas são aquelas responsáveis pela procriação. Isso potencializa o preconceito.” Quando as pessoas LGBTQIAPN+ expressam desejos e afetos, desafiam esses padrões tradicionais estabelecidos.
Passado junho, mês que evidencia a comunidade LGBTQIA+, o Blog Daquilo consultou o especialista sobre os mitos e verdades que cercam a sexualidade queer. Confira:
Indecisão é um mito
Pessoas bissexuais e pansexuais ainda enfrentam a premissa de que estão indecisas ou promíscuas. Segundo Rafael, elas precisam a todo momento provar a sua orientação sexual, inclusive dentro da própria comunidade. “Enfrentam discursos que os tratam como indecisos, como se estivessem em uma fase de transição até se assumirem como gays, lésbicas ou héteros”, pontua.
O especialista destaca que essa visão impacta diretamente a autoestima dessas pessoas, gerando insegurança para viver seus desejos e criando medos constantes de julgamento. Por isso, muitos acabam não revelando sua sexualidade plenamente. O próprio psicólogo, um homem gay, compartilha experiências em que presenciou microagressões, como em rodas de amigos em que uma pessoa se declara bissexual e imediatamente é deslegitimada com frases como “você ainda vai se descobrir como gay”.
Sexo sem penetração é válido
Outro ponto importante é o mito de que, sem penetração, não há ato sexual. Rafael explica que essa ideia vem de uma lógica antiga, baseada em relações entre homem e mulher e na reprodução. Essa visão limitada invalida as experiências de lésbicas, homens trans e pessoas não-binárias, cujas relações, muitas vezes, não incluem penetração. “O sexo não é apenas penetração: é troca, presença e prazer compartilhado — e reduzir isso a um único ato reforça padrões normativos que prejudicam a liberdade sexual”, pontua.
Transexualidade plural
O prazer não está restrito aos órgãos genitais. Rafael argumenta que pessoas trans que não se identificam com seu corpo de origem podem encontrar dificuldades para sentir prazer antes da cirurgia, justamente por não se sentirem pertencentes àquela anatomia. Isso também se agrava quando o parceiro não compreende ou não respeita esses limites.
“Por exemplo, uma mulher trans que não se sente confortável com a genitália masculina pode se sentir pressionada ao se relacionar com um homem que deseja tocá-la ou realizar sexo oral. Essa dissonância entre corpo e identidade pode gerar insegurança, medo e até a recusa de vivenciar a sexualidade”, esclarece o especialista.
Sexo anal e hierarquia
Práticas anais ainda são cercados por preconceitos — inclusive dentro da própria comunidade LGBTQIAPN+. Para Rafael, existe a ideia de que o homem passivo tem menos valor que o ativo, o que reflete padrões heteronormativos de dominação. Esses mitos vêm, em grande parte, de discursos religiosos e até médicos, que reforçam que o sexo anal seria “errado”, “sujo” ou “promíscuo”.
Além disso, há o fato de que esse tipo de prática exige preparo e cuidados específicos, o que deveria ser tratado com naturalidade, e não com tabu. O problema está em como se associa o sexo anal à homossexualidade, ignorando que ele também ocorre em relações heterossexuais — mas, nesse caso, não recebe o mesmo estigma.
Proteção lésbica
O especialista disserta que existe muito tabu em relação ao uso de proteção entre mulheres que fazem sexo com mulheres. Um dos mitos é de que, por não haver penetração com pênis, não há risco de transmissão de ISTs — o que é falso. Outra questão é a falta de acesso a métodos de proteção adequados, como luvas, dedeiras e camisinhas de língua para sexo oral, que são difíceis de encontrar em farmácias.
“Essa dificuldade está diretamente relacionada à priorização do prazer masculino. Enquanto preservativos masculinos estão disponíveis em todos os lugares, produtos voltados à proteção sexual entre mulheres são pouco divulgados e quase invisíveis no mercado”, revela.
Sexualidade e promiscuidade
Existe ainda a narrativa de que pessoas LGBTQIAPN+ vivem uma sexualidade promíscua, o que Rafael opina ser um discurso para mascarar preconceito. “Situações de sexo em público, por exemplo, não são exclusivas da Parada LGBTQIAPN+: já aconteceram em festas populares heterossexuais. O problema não é a orientação sexual, mas o comportamento individual — e isso independe de quem a pessoa ama”, diz.
Assexualidade
As pessoas assexuais enfrentam resistência, o que o especialista interpreta como reflexo de uma sociedade que trata o sexo quase como uma necessidade fisiológica universal. A novela Vale Tudo, inclusive, tem abordado essa questão com o personagem Poliano. “A assexualidade não significa doença, confusão ou ausência de afeto — apenas que aquela pessoa não sente desejo sexual”, disserta.
Em um mundo em que o sexo é bastante presente na comunidade, o assexual é frequentemente visto como alguém “quebrado”, conforme Rafael. Isso causa preconceito tanto entre pessoas LGBTQIAPN+ quanto entre heterossexuais, porque desafia um padrão normativo de prazer e relacionamentos.
Desinformação médica e educacional
Até os anos 1990, a homossexualidade ainda era considerada doença por órgãos oficiais. O Conselho Federal de Psicologia só emitiu uma nota afirmando que não se trata de transtorno em 1999. “Por isso, ainda enfrentamos barreiras no meio médico e educacional, com pouca ou nenhuma formação sobre diversidade sexual e de gênero”, acrescenta o psicólogo.
“É essencial que profissionais da saúde e da educação falem sobre sexualidade com responsabilidade, empatia e clareza — ajudando jovens a entenderem seus corpos, desejos e limites. A percepção da sexualidade começa ainda na adolescência, entre os 10 e os 14 anos, e é nessa fase que o apoio, a escuta e a liberdade são mais necessários.”
Afeto e diversidade
Ao falar sobre as siglas LGBTQIAPN+, Rafael ressalta ser fundamental entender que elas não estão apenas ligadas a práticas sexuais, mas, principalmente, ao afeto, à identidade e ao conforto com o próprio corpo e com o outro. “Cada pessoa deve ser livre para amar, se relacionar e se expressar de acordo com o que faz sentido para si. O respeito às diferentes formas de amar e viver é a base para uma sociedade mais justa.”
Masturbação, jovens e autoconhecimento
A masturbação é uma ferramenta essencial de autoconhecimento, mas ainda cercada de tabus — especialmente entre jovens LGBTQIAPN+, de acordo com o especialista. “Falar sobre isso não significa ensinar a fazer sexo, mas sim ensinar a conhecer e respeitar o próprio corpo e o do outro”, explicita.
A moral religiosa e o medo de “desviar do padrão” impedem conversas honestas e educativas, na opinião de Rafael. “É preciso reforçar que, com responsabilidade e limites, a masturbação ajuda o indivíduo a saber o que gosta, o que não gosta e a identificar situações de abuso ou violência.”, finaliza.

