A escola do Zequinha
O padeiro Zequinha da Bolacha é o prefeito da Cidade do Cabo, a 30 km do Recife. Ganhou o apelido porque troca voto por bolacha. O homem é de poucas letras mas muitas manhas. Certa tarde, recebeu uma queixa. As ruas estavam muito sujas. O lixo não era recolhido havia muitos dias.
O prefeito, de olho nas eleições, quis dar satisfação ao povo. Chamou o assessor de imprensa e pediu:
Escreva um comunicado às rádios. Explique que o caminhão do lixo não pode passar por causa da chuva. As vias estão intransitáveis.
O funcionário pôs mãos à obra. Enquanto redigia o texto, pintou a dúvida. O caminhão atolou-se? O caminhão se atolou? Melhor perguntar ao chefe. O sabichão não pensou duas vezes:
A resposta é simples. Se foram as rodas da frente que se afundaram no barro, o caminhão se atolou. Se as de trás, o caminhão atolou-se. Se as da frente e as de trás, o caminhão se atolou-se.
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Antes ou depois?®MDUL¯
A história se espalhou. Ganhou espaço nos jornais e na tevê. Alguns acharam graça. Riram à solta. Outros ficaram na dúvida. Qual, ó Deus, é a forma correta? O caminhão se atolou? O caminhão atolou-se?
Desmoralização
A irreverência nacional tem uma marca. Desmoraliza. Dizem que o comunismo não fincou raízes aqui com medo de jogar lama na reputação. Afinal, Deus virou brasileiro. Ensinou-nos a jogar no bicho, beber caipirinha e dar um jeitinho. Foi o que aconteceu com a colocação de pronomes. A regra veio de Portugal. Tem tudo a ver com a pronúncia lusitana. Não com a nossa. Na terra de Cabral, os pronomes átonos são átonos. Aqui, são tônicos. Os portugueses dizem m’. Nós, me. É difícil iniciar uma frase com m’. Mas com me é fácil, fácil. ‘Dá-me um cigarro’, pede o filão português. ‘Me dá um cigarro’, pede o brasileiro da gema.
Quase tudo
Em Pindorama vale tudo? Na língua falada de chinelos e camiseta vale. Na escrita, há um limite. Duas regras exigem respeito. Uma: não iniciar frase com pronome átono. A outra: ficar de olho na atração. A gangue do qu (que, quem, qual, porque, quando, quanto), os pronomes e advérbios negativos (não, ninguém, nunca), as conjunções subordinativas (se, que, como) são os principais ímãs do pronome. Contra eles, não adianta reclamar. Há que obedecer.
Exemplos
Quem se ®MDUL¯queixa da imprensa?
®MDUL¯Há muitos países que se ®MDUL¯opõem à guerra no Iraque.
Ninguém o ®MDUL¯procurou ontem.
Não sei como ®MDUL¯Bush se ®MDUL¯pronunciou na ONU.
Se me ®MDUL¯convidarem, aceito o desafio.
®MDUL¯
Gilete
O substantivo entra no time dos ímãs? Não. O danadinho joga na equipe dos giletes. Corta dos dois lados. Com ele, ora ocorre a próclise. Ora, a ênclise. Fica a gosto do freguês.®MDUL¯ Vale a forma que soar melhor.
®MDUL¯O caminhão se ®MDUL¯atolou. O caminhão atolou-se®MDUL¯.
Na ONU, Bush se ®MDUL¯pronunciou a favor da guerra. Na ONU, Bush pronunciou-se ®MDUL¯a favor da guerra.
O Brasil se prepara para as eleições de outubro. O Brasil prepara-se para as eleições de outubro.
Os alunos se retiraram cedo. Os alunos retiraram-se cedo.
Invejoso
O advérbio viu a desenvoltura do substantivo. Invejoso, resolveu imitá-lo. Com aqui, ali, talvez, lá, agora, depois, ontem, hoje, amanhã, o atonozinho pode escolher o lugar. Se quiser ficar antes do verbo, é bem-vindo. Se preferir acomodar-se depois, também.
®MDUL¯Aqui se fala português. Aqui fala-se português.
®MDUL¯Agora se sente melhor. Agora sente-se melhor.
Amanhã eu lhe telefono. Amanhã eu telefono-lhe.
®MDUL¯Depois me dirigi a ele. Depois dirigi-me a ele.
®MDUL¯
Limite
O vaivém do invejoso tem limite. Se houver pausa depois do advérbio, cessa tudo que a musa antiga canta. O pronome, com o rabinho entre as pernas, é obrigado a ficar depois do verbo:
®MDUL¯Aqui, fala-se português.
Agora, sente-se melhor.
Amanhã, telefono-lhe.
®MDUL¯ Depois, dirigi-me a ele.
Moral da história
Nada se perde. Tudo se aproveita. A aula do Zé Bolacha serviu para pôr substantivos e advérbios nos trilhos. Valeu.