Por Mônica Manir, de O Estado de S. Paulo Não consta, face a face, que o professor Cegalla seja um senhor caturra – a não ser que eu escrevesse tête-à-tête agorinha mesmo, como, enfim, acabo de fazer. Para esse catarinense de 88 anos e voz pausada, gramático que atravessou quase cinco gerações de estudantes brasileiros, não devemos nos deixar contaminar por termos peregrinos. Por que hall, se temos vestíbulo? Por que trupe, se temos elenco? Por que complô, se grassa a conspiração? Recorde, xorte e imbrólio, no seu ângulo de visão, seriam preferíveis a record, short e imbroglio. Já diante da possibilidade de confusão que se avizinha com o novo acordo ortográfico, previsto para entrar em vigor nos países lusofalantes, a partir deste mês, Cegalla reage com certo agastamento. “Essa reforma é muito tímida e superficial.” Queria mais punch, ops!, ousadia para atingir não apenas os sinais diacríticos (entre eles o trema, o acento agudo de jibóia e o circunflexo de vôo) como também certas incoerências que se notam no sistema ortográfico brasileiro. Uma desumanidade, por exemplo, é escrever desumano sem h e co-herdeiro com o dito cujo. “Ninguém hesitaria em pronunciar corretamente co-herdeiro sem este h, que me parece inútil.” Pode parecer perseguição, mas lá vai Cegalla propor a guilhotina nas palavras que começam com essa mísera letra. Hesitaria seria esitaria; hoje, oje. “Grafa-se hoje porque vem do latim hodie.” A bem da simplificação ortográfica, portanto, o h etimológico inicial perderia o emprego. O professor lembra o sistema ortográfico de 1943. Iniciativa da Academia Brasileira de Letras, causou rebuliço porque, entre outras medidas, trocou officio por ofício, psalmo por salmo, attento por atento, rhinoceronte por rinoceronte. “Por ter abolido o th, o ph e as consoantes geminadas inúteis, nossa ortografia, como a espanhola, é das mais avançadas no mundo”, categoriza. Sobre sua atração pela língua, ele bota o indicador na testa para recobrar o que Eça disse ao amigo Eduardo Prado: “Brasileiros falam português com açúcar.” Cegalla nasceu em Tijipió, distrito de Tijucas, a cerca de 50 quilômetros de Florianópolis. Lidava com cana-de-açúcar na fazenda do pai, mas aos 12 anos foi enviado a Curitiba para estudar no Colégio Santa Maria, dos irmãos maristas. Ainda na capital formou-se em Letras Clássicas pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, não sem antes trancar a matrícula por quase dois anos para servir no Exército, quando esteve cotado para ser pracinha da FEB. Mas enviou um pedido de dispensa ao então ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra, e pôde voltar aos estudos. Passada a guerra, o Paraná ficou pequeno para suas ambições profissionais. Rasgou então a estrada até São Paulo, onde deu aulas de português no Colégio Marista do Carmo até 1952. Amante da beleza, seja na mulher, seja na natureza, mudou-se para o Rio em 1953, decidido a ficar. No Colégio Rio de Janeiro, em Ipanema, ensinou latim e português. No Santo Inácio, em Botafogo, foi mestre de português e também de literatura, com um diferencial: passou a usar a si mesmo nas aulas. Explica-se. Angustiado com o material didático da época, limitado e sem ilustrações, recheado de textos arcaicos e enfadonhos, Cegalla organizou as anotações feitas durante anos até chegar à Novíssima Gramática da Língua Portuguêsa, que levava circunflexo na época. Era uma gramática normativa, abonada por trechos de obras de autores modernos, como Drummond, Cecília Meireles e Luís Jardim. “As frases não podiam ser muito longas e tinham de oferecer um conteúdo ideológico, um colorido poético.” Nananinanã, portanto, para “A mulher pôs a água no fogão e começou a mexer a comida”. Prefere: “Obelisco não é mourão em que se amarram cavalos” ou “Não se atravessam oceanos só para dançar valsas”, cujas autorias aqui não revelamos para atiçar a curiosidade do leitor. Confessa que o Novíssima da gramática foi ideia dele, inspirado nos Novíssimos Estudos da Língua Portuguesa, do gramático Mário Barreto. O superlativo absoluto poderia se configurar um tiro no pé, não fosse Cegalla pioneiro na tarefa de promover uma arrumação tranquilizadora nos fatos gramaticais. O sucesso da obra foi tamanho que o professor repousou o giz na lousa após 35 anos de magistério para se dedicar exclusivamente aos pedidos da editora. Além da Novíssima, em sua 47ª edição, assina outras gramáticas, dicionários, livros de poesia e traduções de Édipo Rei e Antígona diretamente do grego, esta última, premiada com o Jabuti, que Cegalla, aliás, não foi receber. “Estudei grego na faculdade e depois li a gramática grega sete vezes até assimilar a conjugação.” No prelo estão os episódios, segundo ele, mais bonitos da Eneida, de Virgílio, dados à luz em português há seis meses por meio do latim. Também está a caminho a Novíssima Gramática já adaptada ao novo acordo ortográfico. Pelos números da editora, Cegalla vendeu só de seu dicionário, incorporado pelo Programa Nacional do Livro Didático, 1,5 milhão de exemplares. Com os direitos autorais acumulados por décadas ele ergueu seu patrimônio, que abraça um imóvel em condomínio fechado no Leblon para uso próprio, da mulher e de um dos quatro filhos, mais apartamentos que aluga a turistas no Rio. No terceiro andar da casa do Leblon, ele respira imperativos, concordâncias verbais, vozes passivas, sufixos nominais e superlativos absolutos sintéticos eruditos que emanam de aproximadamente cinco mil seletos títulos, a saber, obras completas de Machado, Bandeira, Vinicius, Drummond, Alexandre Herculano e outros que pinça de acordo com a necessidade e o humor. As histórias, na verdade, lhe são secundárias. Escarafuncha a estrutura das frases e, por isso, considera-se moroso na leitura. Leva de uma a duas semanas para terminar um romance médio, também porque as pelejas de futebol roubam algumas de suas noites e tardes. Mas é lépido no gatilho para perceber que alguém se constrange ao se sentar ante um gramático: “Sempre evitei corrigir as pessoas quando falam por outra cartilha.” Logo diz para os convivas se acalmarem e conversarem naturalmente, para não terem receio, que não é nenhum bicho-papão. Mas ai de ti se disser cataclisma ou se pedir que coloque menas água no copo. “Aí eu não resisto.”
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