O vernáculo

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IVALDO LEMOS JUNIOR Promotor de Justiça do MPDFT

Todas as palavras são naturalmente polissêmicas (têm vários significados possíveis) ou têm, ao menos, alguma ambiguidade. Qualquer dicionário é prova disso. Uma “jaqueira” é sem dúvida uma “árvore”, mas árvore pode ser uma excelente ou uma inadequada maneira de se referir a uma jaqueira. Depende da situação.

Falar errado é, de certa forma, necessário. Pode ser um errado que é, paradoxalmente, certo, porque é funcional. Não teria cabimento utilizar do vernáculo de modo castiço em ambientes onde isso não acontece com nenhuma frequência, como uma oficina mecânica, uma obra de construção civil. As pessoas não iriam compreender e o poder comunicativo fracassaria.

A própria utilização correta dos pronomes, em nosso português brasileiro, parece algo de pernóstico, mesmo quando tal se dá entre pessoas esclarecidas. Isso não deixa de ser um mistério, pois os pronomes existem para tornar a troca de ideias mais fluida e mais limpa. Nossos colegas de idioma latino, como os espanhóis e os franceses, abusam dos pronomes em conversas de rua e mesmo com as crianças.

O que dita a escolha exata das palavras é o efeito desejado para seus próprios fins, ou seja, para aquele momento, para aquele interlocutor. Também entram em cena outros recursos que a linguagem oral proporciona, como a prosódia (entonação), pausas, gesticulação com a cabeça e com as mãos etc.

Tudo faz parte de um contexto ainda mais complexo, em que expressões orais vêm acompanhadas de sinais exteriores, que podem complementar o quadro comunicativo ou, ao contrário, provocar um resultado desastroso. Isso não se aplica necessariamente quando se reúne palavras como “bom” e “dia”, ou “tudo” e “bem”, que são de imediata assimilação.

Mas essas outras três juntas — “quer”, “casar” e “comigo” — somente poderão ser levadas a sério se proferidas em um momento que foi devidamente preparado, e enriquecido de outros componentes, como local e o indefectível gesto do oferecimento da aliança. O namorado que usa as três palavras fatídicas durante uma sessão de cinema, no meio de uma barulhenta perseguição de carro, pode ser tido como um sujeito dado a brincadeiras de mau gosto. Desconfio que namorada nenhuma se animaria a responder “sim” em uma tal ocasião.

Vamos supor que um magistrado e um promotor sejam amigos e estejam fazendo uma audiência judicial juntos. Naquele ato, diante de advogados, réus, policiais, testemunhas, é tudo muito profissional, com a exploração do arsenal do jargão jurídico e da formalidade. Encerrada a audiência, a sisudez é colocada de lado e os dois se põem a conversar de maneira “errada”, com gírias, brincadeiras, palavrões.

A isso se dá o nome de “auditório”. A mesma pessoa pode falar de modos diferentes em um almoço em família, em uma reunião de trabalho, em uma palestra acadêmica, em um posto de gasolina. Não só pode como deve. A pessoa é a mesma, o que muda é o auditório; aquela apenas se adapta a este.

Qual é então a necessidade de se estudar o português? Por que as pessoas deveriam conhecer gramática pela via dos estudiosos e dos autores mais eruditos? Qual é a vantagem de se saber o que é um quiasmo, uma sinédoque, um litote, uma catacrese, um oximoro? Para que deixar Machado de Assis entrar em minha vida?

Porque é isso o que garante o trânsito entre auditórios diferentes, os mais espaçosos inclusive. Em regra, a comunicação começa em âmbitos íntimos, com os pais e familiares, e vai se estendendo a vizinhos e colegas de colégio, e daí para estranhos. A vida não tem lugar cativo.

Quanto mais correta a utilização do vernáculo, maior a chance do maior número de pessoas vir a entender a semântica do comunicador. Isso pode chegar a níveis universais, que não se confinam à nacionalidade da língua originalmente manejada. Ninguém conseguiria ultrapassar os próprios limites de seus guetos linguísticos — que podem ser em miniaturas, como gangues, grupos de torcedores de futebol ou de presidiários, nichos demasiado técnicos — apenas praticando a fala corrente. Para tanto, é irrecusável a dedicação ao estudo. Não existe outro jeito: é preciso parar, sentar, ler um monte de livros, e aprender um pouco.

Por fim, existe um lado não-funcional da linguagem, que não tem um valor exatamente comunicativo. É a chamada literatura, em especial a poesia. Numa frase atribuída ao poeta inglês Robert Browning, ao ser instado a explicar o sentido de um poema de sua autoria, ele disse: “Quando o escrevi, Deus e eu sabíamos o que quis dizer. Agora, só Deus sabe”.

Dad Squarisi

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