Murundu polissêmico

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Antonio Prata

Quero comer mangas em mangas de camisa, curtir os baratos da vida sem pensar em monstruosos insetos

Que manga seja tanto o fruto da mangueira quanto o braço da camisa é um desses indícios -pequenos, mas incontornáveis- de que a humanidade está fadada ao fracasso. Veja, as combinações entre as consoantes e as vogais são infinitas, os frutos, as partes da camisa e os demais itens deste mundo, não. Se usamos o mesmo nome para duas coisas tão distintas, é porque a bagunça é ampla, geral e irrestrita.

Eu sei que a língua não surge por decreto. Palavras brotam como árvores, esgarçam-se como camisas; às vezes, também, mudam de significado: a fruta vira compota, a blusa, pano de chão. Mas assim como os pomares têm seus agricultores e as roupas, as costureiras, o vernáculo conta com os gramáticos para trazer mais racionalidade à selva da comunicação.

Se, em vez de ficarem depenando os tremas de pinguins indefesos em inúteis reformas ortográficas, eles se dedicassem a uma reforma semântica, tudo ficaria mais simples. “A partir de 1º de janeiro de 2014, a manga da camisa passa a chamar-se lafana”. Ou “bada”. Ou “sprrrrlsploft”. (Eu, particularmente, prefiro “lafana”). “A partir de 1º de janeiro de 2014, os cabos do exército passam a chamar-se subsargentos.” Ou “zartos”. Ou “inhaum-inhaum-plaplum”. (Eu, particularmente, prefiro “inhaum-inhaum-plaplum”).

Os novos termos, contudo, pouco importam. Fundamental é deixarmos de viver nesta barafunda em que uma mercadoria que não é cara (rosto) é barata (inseto), em que os budistas são liderados por lamas, em que três pessoas e uma rachadura num copo -uma única rachadura, olhe só- são chamados de trinca.

Polissemia é o nome da lambança. Vem do grego: poli = vários + sema = significado – e muito me admira que gramáticos tenham se reunido, se debruçado sobre o problema e surgido não com uma solução, mas com esta palavra bonita e pomposa. Lembra-me aquela placa: “Atenção, buracos na pista”. Não era mais fácil consertar a estrada? Minha vontade é arrancar a placa e botar sobre um buraco. É pegar “polissemia” e batizar com ela as mangas da camisa. Ou o molho tártaro. Ou o tártaro dos dentes. Ou o povo da Tartária.

Não se trata apenas de um purismo, de uma firula anal retentiva. A polissemia atrapalha a vida da pessoa. Toda vez que chamo meu amigo Caio, por exemplo, projeta-se em algum canto do meu cérebro a imagem deste que vos escreve caindo num bueiro. Quando faço um galo na cabeça, quase escuto cacarejos. Quando ouço falar em banco de dados, penso numa porcaria de um banco feito com dados. São neurônios mobilizados inutilmente. Sinapses jogadas no lixo. É um pedacinho de nossa experiência na Terra que entra pelo cano – como eu, quando penso no Caio.

Ora, gastemos nosso tempo com o que importa. Quero comer mangas em mangas de camisa, quero dar cabo deste problema, curtir os baratos que a vida oferece sem pensar em monstruosos insetos, em Kafka, que nasceu em Praga, sinônimo de peste, que nada tem a ver com Budapeste, que, além de peste, tem Buda no nome; “Antes buda do que Tcheca!”, pensa a senhora de mente suja – mas não eu, pois jamais faria tais insinuações num jornal de família e só vim aqui por amor à língua e ao nosso povo, perdido neste murundu polissêmico. antonioprata.folha@uol.com.br

(Artigo publicado na Folha de S.Paulo de 16.1.13)

Colaboração de Alexandre Garcia

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