“Se os rapazes empreendessem a caça, faria-lhes bem ao instinto”, escreveu Maitê Proença em O Globo de quinta-feira. Ops! Leitores se assustaram. Depois, lembraram-se de Tancredo Neves. “Não confio em ninguém que saiba usar a mesóclise”, repetia ele. A frase oculta as manhas e artimanhas do político mineiro. Com ela, o quase-presidente deu o recado: não é mole colocar o pronome no meio do verbo. Maitê serve de prova.
Manuais de redação de jornais consideram a forma rebuscada. Aconselham os repórteres a deixá-la pra lá. Os professores de cursinho concordam. Na ânsia de garantir pontinhos nos testes, sugerem aos alunos: “Não a usem. Fugindo dela, vocês correm menos riscos”. A meninada nem questiona. Resultado: a mesóclise virou praga. Não se ensina como empregá-la, mas como evitá-la.
Volta e meia, porém, pintam situações em que ela se impõe. Aí, o castigo vem a galope. A indesejada vira fantasma. Uhhhhhhhh! O que fazer? Só há uma saída. Não bancar o avestruz. Correr atrás dos mistérios do bicho-papão. A descoberta: o diabo não é tão feio quanto o apresentam.
Pra dar e vender
O português é generoso. Tem três jeitos de colocar o pronome átono. Um: antes do verbo (próclise). Outro: depois do verbo (ênclise). O último: no meio do verbo (mesóclise). As gramáticas ditam regras e regras sobre o emprego de cada um. É um deus-nos-acuda. Todas combinam com a pronúncia lusitana. A língua falada e a linguagem informal tupiniquins se rebelaram diante da opressão. Mandaram as normas pras cucuias.
Oswald de Andrade explica: “Dê-me um cigarro / Diz a gramática / Do professor e do aluno / E do mulato sabido / Mas o bom negro e o bom branco / Da Nação Brasileira / Diz em todos os dias / Deixa disso, camarada, / Me dá um cigarro”.
O brado de liberdade não vale para a norma culta. Em memorandos, ofícios, relatórios, redações de concursos, editoriais de jornais, a ordem é uma só: obedecer aos ditames sem tugir nem mugir. Os rebeldes pagam caro. Uns levam bronca do chefe. Outros perdem pontos em provas. Outros, ainda, dão a promoção de mão beijada pro outro. Aí, adeus, dinheirinho a mais.
O fantasma
Voltemos à mesóclise. O pronome átono (o, a, lhe, se, nos, vos) só tem vez no meio do verbo em dois tempos. Um: o futuro do presente (cantarei). O outro: o futuro do pretérito (cantaria). Nos demais, nem pensar! A forma é pra lá de simples. Quer ver?
Comunicarei ao presidente a decisão dos servidores.
O objetivo é substituir o objeto indireto (ao presidente) pelo pronome átono (lhe). Há três passos a seguir:
1. pôr o verbo no infinitivo: comunicar
2. acrescentar o pronome: comunicar-lhe
3. juntar o pedacinho cortado (desinência): comunicar-lhe-ei
Mais um exemplo:
Obedeceríamos ao regulamento se o conhecêssemos.
A fórmula: verbo no infinitivo + pronome + desinência = obedecer-lhe-íamos.
A mesóclise não admite discriminações. Como ocorre na ênclise, os verbos terminados em r, s e z perdem a letrinha final quando seguidos do pronome o ou a, que viram lo ou la: Convenceremos o presidente a receber os servidores (convencê-lo-emos) .
Os diferentes
Atenção, distraídos. Os verbos dizer, fazer e trazer gostam de ser diferentes. Fazem os futuros assim — direi, diria; farei, faria, trarei, traria. A mesóclise, com eles, exige dupla atenção. A trapaceira não se forma do infinitivo. Mas do radical dir, far e trar:
Darão o recado ao professor. Dá-lo-ão ao professor. Dar-lhe-ão o recado.
Fará o pedido ao ministro. Fá-lo-á ao ministro. Far-lhe-á o pedido.
Traremos em mão o documento ao diretor. Trá-lo-emos em mão ao diretor.
Trar-lhe-emos o documento em mão.
Tudo bem
Você chegou até aqui. Desvendou os mistérios da mesóclise. Mas não se convenceu. Concorda com Tancredo, os manuais de redação e os professores de cursinho? Tem todo o direito. Você pode muito bem viver sem tantos hifens. Basta anteceder o futuro de uma palavra que atraia o pronome: Entregá-lo-emos em mão. Nós o entregaremos em mão.
Cuiiiiiiiiidado. É proibido — proibido mesmo — colocar o pronome depois do futuro como fez Maitê Proença. “Faria-lhes bem?” Cruz-credo! Nem com autorização do Senhor! “Far-lhes-ia bem” é a forma abençoada pela norma culta.
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