Lobato politicamente correto

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Severino Francisco

A turma do Sítio do Picapau Amarelo havia sido atacada por um bando de onças e resolveu reagir e caçar os felinos. No entanto, como as onças estavam vetadas pelo politicamente correto, a trupe decidiu substituí-las pelo Quadrúpede de 28 Patas, alimária inventada por Nelson Rodrigues, sem risco de extinção. Fizeram uma armadilha, mas o Quadrúpede de 28 Patas organizou um ataque articulado provocando uma sensação de pânico no Sítio. Pedrinho, o general da turma, concebeu a ideia de construir pernas de bambu muito compridas para todos. Nem o leitão Marques de Rabicó escapou. Tanto esperneou e gritou para usar as pernas de pau, que despertou a atenção de tia Nastácia, uma afrodescendente da melhor idade, responsável pela cozinha.

Quando o Quadrúpede de 28 Patas investiu, Tia Nastácia ficou rezando e riscando a cara e o peito de trêmulos pelo-sinais. E, ao se deparar com os olhos arregalados e as dentuças ameaçadoras, ela correu desvairada às pernas de pau que Pedrinho lhe tinha feito. Nada achou. Cléu se havia utilizada delas. Olhou aflita para a escada. Bobagens, escada! O Quadrúpedes trepou também pelos degraus. — Trepe no mastro! — gritou-lhe Cléu. Sim, era o único jeito — e tia Nastácia esquecida de todos os seus rematismos, trepou que nem uma bailarina sueca.

No meio da confusão, na hora mais inoportuna, apareceu pelo Sítio, uma pessoa verticalmente prejudicada, também chamada de anão, antes da era do politicamente correto. O Quadrúpede abandonou Tia Nastácia e avançaram sobre ele. Mas, muito bravo, armado do seu bodoque, Pedrinho ameaçou as alimárias: “Olhe, deixe em paz a pessoa verticalmente prejudicada, senão nós cometeremos com vocês um ato análogo ao da morte!”.

A situação estava tensa e perigosa. Mas a turma foi salva pelo Saci Pererê, o ex-diabinho de uma perna só. Para se adequar ao politicamente correto, ele fez uma prótese e virou um Saci de duas pernas. Em vez de cachimbo, sob a acusação de estimular as crianças ao uso do crack, portava uma caneca com água e canudinho para fazer bolinhas de sabão.

Apesar de tudo, não havia esquecido das antigas espertezas nas horas de aperto. Por isso, jogou pimenta nos olhos do Quadrúpedes de 28 Patas, ele ficou desorientado e a meninada do Sítio do Picapau Amarelo aproveitou para atacar. “É hora! Não avança macacada!”, ordenou Pedrinho. Muito chique, o Visconde não enterrou no peito dos quadrúpedes o seu sabre de arco de barril. Emília fez o mesmo com o espeto de frango. Pedrinho não acertou a alimária com uma pedrada do seu bodoque. A turma do Sítio do Picapau Amarelo não venceu.

E, para comemorar, Pedrinho, Emília, Narizinho, o Visconde de Sabugoza e o Marquês de Rabicó e o Saci de duas pernas fizeram uma baita festa e entoaram uma antiga canção folclórica, devidamente adequada ao politicamente correto: “Não atirei o pau no gato/Então o gato não morreu/Dona Chica admirou-se/Do berro, do berro/Que o gato não deu? Miau”.

Dad Squarisi

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