Lá vai o Brasil, subindo a ladeira

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JAIME PINSKY

Historiador, professor titular da Unicamp, diretor da Editora Contexto   Na cultura oral, os contadores de história eram verdadeiros atores que relatavam episódios, reais ou imaginários, com dramaticidade, acentuando passagens emocionantes, criando suspense, a ponto de deixar insones os ouvintes, abalados com revelações e sugestões que a narrativa apresentava. Ainda encontramos resquícios dessa cultura no interior do país, mas ela se encontra em extinção, engolida pela TV, mais visual, acessível a quase toda a população.

Talvez a grande tragédia da cultura brasileira tenha sido passar, diretamente, da cultura oral para a digital. Quando, finalmente, o Estado passou a considerar essencial a alfabetização de toda a população (com qualidade muito, mas muito discutível mesmo, diga-se de passagem) já era tarde. A internet, com todos os seus produtos (e-mails, redes sociais, Twitter, Facebook), assim como a cultura dos torpedos em celulares, promoveram não apenas uma nova linguagem (até aí, tudo bem), mas um discurso sugestivo em vez de um outro argumentativo, portanto sem coesão ou coerência, sem fluxo narrativo, sem começo, meio e fim.

Sempre poderíamos argumentar que, para alguns, a frase curta, solta, é apenas uma forma a mais de expressão, que pode perfeitamente coexistir com outras. De acordo, mas isso só existe para os que antes aprenderam a estruturar o pensamento logicamente. Para a maioria, o discurso argumentativo não passa de uma forma antiga, superada, de comunicação entre os homens, uma espécie de pré-história que se confunde com redigir à mão ou com velhas máquinas de escrever.

É claro que a substituição das formas de comunicação tem a ver com um dos aspectos mais relevantes da vida moderna, a pressa. Comemos depressa, devoramos o nosso alimento em vez de degustá-lo mansamente. Amamos depressa e substituímos impacientemente nossa antiga paixão por outra, mais fresca, que, no entanto, não resistirá a nenhuma rusga, nenhuma crise. Usamos nossas roupas, nossos carros, nossos computadores, nossos celulares até que eles nos pareçam “superados”, não necessariamente por obsolescência real, mas psicológica. O novo, sempre o novo. Afinal, não é para isso que trabalhamos?

A sociedade de consumo venceu, o capitalismo darwinista (na expressão de Amós Oz), competitivo, produtor de mercadorias, venceu. Ironicamente, o país ícone dos comunistas até poucos anos atrás, a China, é o mais darwinista dos produtores de mercadorias com obsolescência programada (pela má qualidade dos componentes, ou pelo cansaço do usuário). A propaganda venceu, conseguiu convencer a todos de que seríamos infelizes, verdadeira e profundamente infelizes se não conseguirmos fazer dinheiro suficiente para comprar aquele produto ou obter aquele serviço que nosso colega, nosso amigo, nosso conhecido conseguiu.

Então, para que ler um livro de Tomas Mann, que tem centenas de páginas e exige um investimento intelectual mais sério, se podemos nos emocionar com capítulos de novelas cafonas e óbvias? E o mais grave é que elas preenchem nossas necessidades. Para que procurar um filme mais exigente, se consumimos os mesmos filmecos que nossos filhos pequenos gostam, os que escondem a inexistência de conteúdo por meio de uma forma cada vez mais elaborada, plágios não bem disfarçados de verdadeiros criadores? Nossa incapacidade de desfrutar de produtos intelectuais mais sofisticados pode ser percebida até na preocupação de lermos e enviarmos mensagens de celular no meio de uma sessão de cinema, ou da execução de um movimento lento de um concerto de Beethoven.

Tudo isso me vem à cabeça a partir de notícia veiculada no Jornal da Cultura (TV Cultura, São Paulo) desta última quarta-feira. Pesquisa feita com jovens da periferia de São Paulo, sem formação universitária, mostra que eles estão comprando automóveis e motos para seu transporte pessoal, para pagar em dois ou três anos. Triste governo, incapaz de dotar a cidade de uma rede mínima de transporte coletivo. Mas tristes garotos também. Perguntado sobre seus planos após terminar de pagar o carro, um deles não hesitou em afirmar: “Comprar um carro melhor”.

Despreparado, nem sequer cogita usufruir de bens culturais produzidos pela humanidade, mas acredita que sair metaforicamente da periferia é ter um carro como o de quem mora na área central da cidade. Como não sabe ler e compreender, sua consciência social limita-se à percepção de tuiteiro, a de que possuir é ser feliz. E assim vamos, valorosos e fortes, na frente da Inglaterra, em busca do cetro de maior economia do mundo.

Dad Squarisi

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