Cláudio Moreno Pois não é que esta semana o Brasil inteligente ficou sabendo, estarrecido, que um procurador da República de Uberlândia quer obrigar o Instituto Antônio Houaiss a retirar de circulação todas as edições do dicionário Houaiss, que contêm, segundo a excelentíssima sumidade, “expressões pejorativas e preconceituosas relativas aos ciganos”?
Confesso que há muito eu não ouvia tamanho disparate e fiquei tão chocado com a notícia que, a princípio -– imaginando que fosse mais um desses boatos propagados pelas ondas do mar da internet -–, pus minha mão no fogo pelo procurador: “Um membro do Ministério Público não vai cometer o erro primário de confundir o texto de um dicionário com o de uma enciclopédia”, sentenciei -– mas, ai de mim, logo me convenci de que teria feito melhor se tivesse deixado a mão no bolso: era tudo verdade!
Ocorre que esse dicionário -– de longe, o melhor que já tivemos em língua portuguesa -– não faz mais do que a obrigação ao registrar que o termo cigano tem oito acepções, entre elas duas que Houaiss expressamente rotula como “pejorativas”: “aquele que trapaceia; velhaco, burlador” e “aquele que faz barganha, que é apegado ao dinheiro; agiota, sovina”.
Afinal, este é, como vimos, o compromisso tácito que todo lexicógrafo que se preze assume conosco: apresentar o repertório de significados atribuídos a cada palavra e indicar as particularidades de seu uso (“informal”, “antiquado”, “chulo”, “regional”, etc.).
Nosso douto procurador deveria ter percebido que as informações apresentadas pelo Houaiss -– que, desculpem lembrar a obviedade, não é uma enciclopédia -– se referem ao termo, não ao povo cigano. No dia em que registrar os valores depreciativos que certos vocábulos assumiram ao longo do tempo for considerado um crime, nossa língua -– ou melhor, nossa civilização terá embarcado numa viagem sem volta para a noite escura da desmemória.”
(Artigo publicado na Zero Hora. Colaboração de José Carlos Cancelli.)
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