Que barbaridade!Que homens são esses? Como um beócio, capadócio ou filisteu desses se tornou procurador? Onde está a cultura desse que judia de nossa já precária cultura? Que país estamos nos tornando? Como diria certo âncora da televisão: “isso é uma vergonha!”. (José Carlos Cancelli)
Aconteceu, sim. E foi em Minas. E foi uma autoridade federal (“douto procurador”, segundo a ironia do comentarista)l: “esta semana o Brasil inteligente ficou sabendo, estarrecido, que um procurador da República de Uberlândia quer obrigar o Instituto Antônio Houaiss a retirar de circulação todas as edições do dicionário Houaiss, que contêm, segundo a excelentíssima sumidade, “expressões pejorativas e preconceituosas relativas aos ciganos”?” [Veja dois comentário: 1 filósofo na Folha e um filólogo na Zero Hora] Como dizia o filósofo, a burrice é a coisa mais democraticamente distribuída neste mundo. A. XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXFSPAULO 2.3.2012 HÉLIO SCHWARTSMAN Censurando o dicionário SÃO PAULO – Ou botaram alguma coisa na água do bebedor do MPF (Ministério Público Federal) de Belo Horizonte ou o parquet não sabe para que serve um dicionário. É despropositada a ação civil pública que o MPF ajuizou pedindo a retirada de circulação do dicionário “Houaiss”, porque a obra contém “expressões pejorativas e preconceituosas” contra os ciganos. Entre as múltiplas definições para a palavra, constam “aquele que trapaceia, velhaco, burlador” e “agiota, sovina”. Evidentemente, o “Houaiss” marca esses usos como pejorativos. Não cabe ao lexicógrafo dar lições de moral ou depurar o idioma das injustiças sociais que ele carrega, mas tão somente registrar as acepções presentes e passadas dos vocábulos. Se deixa de fazê-lo, a obra torna-se inútil. Por isonomia, o MPF deveria também mandar recolher todos os dicionários que trazem, por exemplo, o termo “beócio”. Para essa palavra, o “Aurélio” registra: “curto de inteligência; ignorante, boçal”. Se olharmos para a etimologia, descobriremos que estamos diante de um imemorial preconceito dos atenienses, para os quais os habitantes da Beócia não passavam de camponeses estúpidos. Na mesma linha vão “capadócio” (natural da Capadócia, mas também ignorante, trapaceiro, canalha), “filisteu” (antigo habitante da Palestina e pessoa inculta, vulgar), “vândalo” (membro de uma tribo germânica e destruidor), além de “lapônio”, “ladino”, “safardana”, “maltês”. Também carregam alguma dose de intolerância termos como “judiar” (agir como judeu e maltratar), “cretino” (quem padece de hipotireoidismo), “escravo” (que vem de eslavo). No fundo, línguas são verdadeiros catálogos de preconceitos, às vezes nem originais, mas herdados de outros povos. Com o passar do tempo, já nem os reconhecemos como tal, mas as palavras em que resultaram enriquecem e dão caráter histórico ao idioma. Privar a língua dessa dinâmica é torná-la uma língua morta. helio@uol.com.br xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxZERO HORA 3.12.2012: PROFESSOR CLÁUDIO MORENO “Pois não é que esta semana o Brasil inteligente ficou sabendo, estarrecido, que um procurador da República de Uberlândia quer obrigar o Instituto Antônio Houaiss a retirar de circulação todas as edições do dicionário Houaiss, que contêm, segundo a excelentíssima sumidade, “expressões pejorativas e preconceituosas relativas aos ciganos”? Confesso que há muito eu não ouvia tamanho disparate, e fiquei tão chocado com a notícia que, a princípio – imaginando que fosse mais um desses boatos propagados pelas ondas do mar da internet –, pus minha mão no fogo pelo procurador: “Um membro do Ministério Público não vai cometer o erro primário de confundir o texto de um dicionário com o de uma enciclopédia”, sentenciei – mas, ai de mim, logo me convenci de que teria feito melhor se tivesse deixado a mão no bolso: era tudo verdade!
Ocorre que este dicionário – de longe, o melhor que já tivemos em língua portuguesa – não faz mais do que a obrigação ao registrar que o termo cigano tem oito acepções, entre elas duas que Houaiss expressamente rotula como “pejorativas”: “aquele que trapaceia; velhaco, burlador” e “aquele que faz barganha, que é apegado ao dinheiro; agiota, sovina”. Afinal, este é, como vimos, o compromisso tácito que todo lexicógrafo que se preze assume conosco: apresentar o repertório de significados atribuídos a cada palavra e indicar as particularidades de seu uso (“informal”, “antiquado”, “chulo”, “regional”, etc.). Nosso douto procurador deveria ter percebido que as informações apresentadas pelo Houaiss – que, desculpem lembrar a obviedade, não é uma enciclopédia – se referem ao termo, e não ao povo cigano. No dia em que registrar os valores depreciativos que certos vocábulos assumiram ao longo do tempo for considerado um crime, nossa língua – ou melhor, nossa civilização terá embarcado numa viagem sem volta para a noite escura da desmemória.”
O problema é tão sério que voltaremos a ele na nossa próxima coluna.”
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