Houaiss no banco dos réus 10

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Guydo de Almeida

Senhora Dad Squarisi

Sou seu leitor assíduo e entusiasta de sua coluna e de seus livros pela qualidade de seu trabalho, pela excelência de seu texto, por sua clarividência.  Há anos coleciono recortes de sua coluna que arquivo em pastas para posterior consulta e deleite intelectual. Consulto sempre seus livros, com prazer sempre renovado.

Entretanto, não consigo concordar com a história do verbete “cigano” constante do Dicionário Houaiss. Não considero que o dicionarista “bobeou”.  Ele registrou as acepções do vocábulo e teria bobeado e sido omisso se não o fizesse. Não é essa, por acaso, a função do dicionarista? 

A função precípua do dicionário não é registrar as várias acepções de cada vocábulo de uma língua? Se ele não registrasse a acepção em questão, teria sido omisso, preconceituoso e teria falhado no seu objetivo.

Equivocaram nos seus julgamentos quem pediu, quem concedeu, quem aprovou e quem acatou esse verdadeiro patrulhamento linguístico por que atualmente passamos, o que nada mais é do que uma confirmação do Febeapá (Festival de besteira que assola o país), criação do inesquecível Stanislau Ponte Preta. 

Patrulhamento equivocado, puro e simples besteirol.  E até o MPF caiu nessa armadilha. E a senhora informa que “a edição atualizada cortou o trecho ofensivo”.  Um dicionário (mormente o Houaiss) não emite juízos de valor, portanto, ele não ofende, nem elogia. Ele apenas registra. E tem obrigação de fazê-lo, ou correr o risco de ser incompleto. 

Ainda bem que o dicionarista Houaiss não está mais entre nós para sofrer por seu trabalho ultrajado pela incompreensão generalizada, pelo modismo inconsequente.  Mas sua laboriosa equipe, ela sim, deve estar muito ofendida com tanto desrespeito e impropriedade.  

Se a moda pega, quantos não serão os próximos inúmeros verbetes e acepcões a serem suprimiddos dos dicionários, tornando-os obras aleijadas, sem qualquer utilidade? No estágio em que se encontram as ciências da linguagem, isso seria procedimento inconcebível.

A linguistica atual não pode aceitar atitude tão retrógrada, tão anticientífica.  Francamente, da senhora era de se esperar atitude diferente: uma defesa incondicional da posição do dicionarista, de sua equipe de trabalho e da obra, que é o que interessa, em última análise. Um dicionário é, por definição, o registro dos usos linguísticos dos usuários de uma língua, sejam esses usos expressos em recursos carregados ou não de ideologias, preconceitos, impropriedades. 

O dicionário não julga, não avalia, não aprova nem reprova; ele registra.  E esse registro deve ser exaustivo. Só assim a obra será completa, ou tenderá a atingir a completude.  De qualquer forma, foi lamentável tudo o que ocorreu, por não se levar em conta o que seja um dicionário e qual a sua função.

Dad Squarisi

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