Qual é a principal diferença entre os homens e os demais animais que habitam o nosso planeta? Vantagens apregoadas durante muito tempo, como a capacidade de amar, a memória, a organização social, os laços familiares duradouros, não podem mais ser considerados. Vídeos mostrando cenas “humanas” entre elefantes, golfinhos, leões, para não falar de cães e gatos estão à disposição de todos e a distância entre os chamados irracionais e nós parece-nos muito mais próxima do que parecia há algum tempo. Fica, contudo, a questão: o que fez com que o ser humano, desprovido de garras para caçar (como o leão), talento inato para construir (como o castor), agilidade para perseguir ou fugir (como o leopardo ou o veado), casaco natural para se aquecer (como o urso), se tornasse o verdadeiro rei dos animais?
A resposta é simples: o homem é o único habitante deste planeta capaz de produzir, guardar e consumir cultura. Cada achado, cada descoberta, cada poema, cada música, cada teorema descoberto, deduzido ou criado por qualquer homem em qualquer canto da Terra é devidamente anotado em linguagem acessível aos demais habitantes do planeta (ou boa parte deles) de modo a formar um conjunto fantástico de informações, de dados. A conexão que há entre os seres humanos de diferentes partes do mundo não existe entre nenhum outro tipo de animal, mesmo considerando que baleias e muitas espécies de aves atravessam continentes mais rapidamente e com mais autonomia do que qualquer um de nós.
Aí está a diferença: enquanto os outros animais são mais dotados, naturalmente (ou seja, pela natureza), nós somos muito mais capazes, socialmente (ou seja, por causa de nossa organização social). Em outras palavras, a superioridade do ser humano não é definida pela natureza, ou por qualquer deus, mas pela história. Não nascemos assim, mas assim nos tornamos. Não somos o que somos por decisão divina, mas por causa do nosso esforço. Para ser preciso, porque sabemos criar cultura, armazenar cultura e utilizar cultura se e quando achamos conveniente.
Armazenar cultura pressupõe, preferencialmente, o domínio da escrita. Mais precisamente, das letras e dos números. Há poucas dúvidas de que tanto a escrita quanto os números surgiram em função da necessidade que antigos impérios do Médio Oriente tinham para controlar a produção (principalmente de grãos) e o pagamento de impostos. É possível que a escrita tenha surgido em mais de uma região de modo simultâneo, mas ainda não se pode afirmar se isso aconteceu ou se, por ser muito prática, a invenção se espalhou por difusão cultural. O fato é que, aos poucos, a escrita vai se aperfeiçoando até chegar à alfabética, bem próxima da que utilizamos até hoje.
Aos poucos, também, o local em que se escreve vai mudando. É em blocos de pedras, depois em pedaços de barro, em plantas (como o papiro), em pele de animais (como o pergaminho), no papel. Neste, escrevia-se com penas naturais, depois com simulacros de penas (os mais velhos talvez se lembrem das canetas e penas escolares, dos tinteiros portáteis e fixos). As canetas esferográficas foram substituídas pelas máquinas de escrever, estas pelo computador, pelo smartphone.
Nesse processo todo, o homem criou o livro. O livro passou, com justiça, a ser o símbolo mais acabado da cultura humana. É no livro que o cientista apresenta suas descobertas, que o historiador narra e explica o que aconteceu, que o escritor cria as narrativas que nos permitem viver aventuras sem correr risco, que o poeta expressa a dor que não sente, mas que nós sentimos. É no livro que o urbanista apresenta a cidade que não existe, mas que deveria existir, que lembramos a saga de nossa família, de nossa cidade, de nosso povo. É nos livros que discordamos de forma civilizada, que opomos ideia a ideia, sem guerrear, sem derramar sangue.
É nos livros que viajamos sem sair do lugar, que nos igualamos, jovens e velhos. Quando lemos, não temos perna quebrada, não estamos presos no leito, não estamos impedidos de viajar, pois, com o livro, podemos viajar para qualquer lugar. Somos o bicho mais hábil e inteligente porque só nós conseguimos ler livros.
Agora, mais do que nunca, é importante ler livros. Com eles, e só com eles, atravessaremos as piores tempestades. Se a capacidade intelectual do homem foi, como querem alguns, um dom de Deus, sem dúvida foi Deus que criou o livro.
(JAIME PINSKY é historiador, professor titular da Unicamp — Email: jaimepinsky@gmail.com)
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