Faça o que eu digo

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Al Martin

Nossa presidente está nos Estados Unidos. Seguindo uma tradição não escrita, o Brasil tem a honra de pronunciar o discurso inaugural de cada sessão anual da ONU. Não vai muito além disso: uma homenagem que respeita a tradição. As palavras do presidente brasileiro de turno não costumam abalar as estruturas do planeta. E, pelo que vem noticiando a imprensa, este ano não será diferente. Como tem feito estes últimos anos, vamos mais uma vez nos vitimizar e acusar os “países ricos” de entravarem nosso processo civilizatório.

Dilma, acompanhada de numerosa comitiva, viajou de véspera. Compreende-se: há que dar o devido descanso aos corpos cansados pelo sacolejo da maria-fumaça presidencial e pela brutal defasagem horária de… uma hora. Ninguém é de ferro. Viajaram na noite de sábado para domingo. O dia de descanso foi muito bem aproveitado. Reunião entre as cabeças pensantes da República de manhã e passeio pelas ruas à tarde. Questão de espairecer. Ninguém é de ferro.

O mais interessante vem agora. A agenda presidencial prevê encontro com preeminentes líderes mudiais, notadamente com representantes da Ucrânia e da Indonésia. Com tantos chefes de Estado ou de governo do mundo inteiro excepcionalmente reunidos em escassos metros quadrados, seria realmente uma pena perder a ocasião de entreter-se com personalidades de tal magnitude e de tal importância para nossos interesses.

Bizarramente, nenhum encontro está previsto com o anfitrião, Obama, que, por acaso, é também presidente da primeira potência do planeta. «Talvez uma conversa fortuita de corredor, já que o discurso de Dilma é imediatamente seguido pelo de Obama» ― dizem os jornais. É, talvez.

Desde que terminou a última guerra, a posição tradicional do governo brasileiro tem sido de tentar apagar incêndios. A tendência acentuou-se aceleradamente nos últimos 10 anos. As autoridades que obram em nosso nome vêm tentanto apagar fogueiras, mesmo que a queimada não tenha deixado mais nada a consumir.

Foi assim entre hermanos sul-americanos briguentos, em Honduras, no Irã, até no cronicamente convulsionado Oriente Médio. A espantosa obstinação em resolver tudo no papo e no tapinha nas costas, a fobia do enfrentamento, a certeza de que nada resiste a uma boa conversa ― e a algum favor monetário, se o caso o exigir ― têm-se tornado folclóricas. Dialogar, dialogar, dialogar, essa é a palavra de ordem.

Entre os muitos diferendos que temos atualmente, um diz respeito a tarifas de importação e abala particularmente nossas relações com os Estados Unidos. Parece que têm a ver com um tal tsunami monetário.

Sem entrar no mérito da questão, fico aqui a cismar. Ora bem, se o mantra «dialogar, dialogar, dialogar» vale para certos casos, por que, cáspita, não valeria neste? Por que nossa presidente não trocaria meia hora de seu passeio turístico para entrevistar-se com o presidente do país em que se encontra?

Pode-se argumentar que assuntos técnicos se resolvem entre técnicos, sem necessidade de intervenção de chefes de Estado. É verdade cristlina. Mas existe o fato e existe o símbolo. O que ficam são as fotos, os filmes, as manchetes de jornal. Alguém se lembra ou imagina as reuniões técnicas dos que planejaram e construíram Brasília? O que ficou foram fotos, filmes e relatos de apertos de mão entre Juscelino, Niemeyer, Lucio Costa. Os símbolos transcendem os fatos.

Eventuais reuniões técnicas não costumam ser filmadas nem mesmo registradas. Nossa presidente e aqueles que a aconselham perderam uma excelente oportunidade dar ao mundo o símbolo de que a doutrina do diálogo vale para todos os países e não só para alguns. Um rei que dialoga somente com seus amigos, desprezando os menos chegados, não tem amigos: tem comparsas.


Dad Squarisi

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