Globo, SBT, Record & cia. perdem audiência dia após dia. Não há novela nem programa humorístico capazes de concorrer com o reality show da Câmara e do Senado. O Legislativo está no olho do furacão. Denúncias pintam de todos os lados. Contradições, lágrimas, jogos de cena — tudo tem vez no palco parlamentar. De todas as manobras, um pormenor chama a atenção. É o tratamento. Vossa Excelência e Vossa Senhoria trombam a torto e a direito.
Presidente, deputado, senador, ministro, prefeito têm sangue azul. Recebem o tratamento de excelência. Os demais mortais — professores, diretores, advogados, médicos, engenheiros, comerciantes — pertencem à plebe. Sem pedigree, não passam de senhoria. É aí que a porca torce o rabo. No calor dos debates, muitos metem os pés pelas mãos. Senhorias viram excelências. Seu se transforma em vosso.
Descoberto o tropeço, a reação é sempre a mesma:
— Vossa Excelência… desculpe.. melhor… quer dizer… isto é… Vossa Senhoria…
Telespectadores riem e aguardam a nova vítima. Não esperam muito. Minutinhos depois, outro parlamentar cai na armadilha. Apostas correm soltas. Quem será o próximo? Quantos minutos levará? Dizem que Glória Perez é fiel espectadora da TV Câmara e da TV Senado. Busca inspiração para escrever os folhetins.
Dos tempos da realeza
A história dos pronomes de tratamento vem de longe. Começou no século XII. Exatamente em 1143, quando Portugal se tornou reino independente. Afonso Henriques, o primeiro rei, se sentia-se tão poderoso que dizia:
— Deus sou eu.
Era proibido dirigir-se a ele. Quem ousasse, perdia a cabeça. Daí, bem antes da guilhotina, surgiu o verbo decapitar. O trissílabo significa cortar a cabeça. Como fazer? Se, no auge da paixão, a amada dizia ao rei, “te amo”, a cabeça dela rolava…com peruca e tudo. Se o médico perguntava ao soberano o que estava sentindo, não recebia reposta. A degola vinha antes. E o ministro da Fazenda? Como saber se podia aumentar os impostos?
O jeitinho
O Conselho de Sábios se reuniu. Nasceu aí o jeitinho. A mágica era esta: ninguém falaria ao rei, mas à majestade do rei. Chamá-lo-iam de Vossa Majestade. As pessoas se dirigiriam ao rei sem se dirigir a ele:
— Eu amo Vossa Majestade, dizia a namorada olhando o rei nos olhos.
Nas cartas cheias de suspiros, escrevia aos amigos: “Eu amo Sua Majestade”. O rei ficou feliz. Os puxa-sacos, que existiam desde então, começaram a inventar pronomes. Nasceram então Vossa Excelência, Vossa Senhoria, Vossa Eminência, Vossa Magnificência. E por aí vai.
Era um barato. Os bajuladores não se dirigiam ao rei. Mas à excelência do rei, à senhoria do rei, à eminência do rei. Depois, os pronomes se especializaram. Reitor ficou com magnificência. Cardeais abocanharam eminência. Papa preferiu santidade. Altas autoridades adotaram excelência. E assim por diante. Para azar nosso, que precisamos memorizá-los até hoje.
Concordância
— Vossa Majestade é divino. Sou sua fã até debaixo d’água, dizia a futura rainha.
Reparou? A namorada sabida fazia a concordância como manda a gramática. Os pronomes de tratamento levam o verbo e os pronomes para a terceira pessoa. Por isso, nunca, nunca mesmo, se usa vosso com eles.
E o adjetivo? Não deveria concordar com majestade, substantivo feminino? Sim. Mas quem ousaria chamar o rei, tão machão, de divina? Deu-se outro jeitinho. Criou-se a silepse. A figura permite seja feita a concordância com a idéia, não com a palavra. O adjetivo concordaria com o sexo da pessoa, não com o substantivo. Daí a rainha ter usado divino, não divina.
Efeitos do calendário
A grafia dos pronomes sofreu os efeitos do calendário. Nos tempos do rei, as pessoas escreviam à mão. A abreviatura era feita com o azinho em cima e, abaixo dele, o ponto (V.Exª.) Com a máquina de datilografia, o traço substituiu o ponto (V.Exª). Alguns programas de computador não têm o azinho. Escrevem-no na mesma linha seguido de ponto (V.Exa.).
O Manual de redação da Presidência da República põe ponto final na briga. Proíbe a abreviatura do pronome de tratamento. A regra vale para o Poder Executivo. Só.
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