A sessão corria solta no Supremo Tribunal Federal. Discursos recheados de juridiquês falavam da licença-maternidade. De repente, não mais que de repente, o advogado Renato Nunes disse que “o pedido de justiça que estou fazendo aqui para vocês, excelências, nunca foi tão eloquente”. Marco Aurélio Mello empinou-se. “Para vocês?”, perguntou. O advogado ficou confuso. O ministro explicou que se referia à forma de tratamento.
Do baú real
Dizem que tudo começou no século 12. Exatamente em 1143, quando Portugal se tornou reino independente. Afonso Henriques, o primeiro rei, deu início à história. Sentia-se tão poderoso que dizia “Deus sou eu”. Era proibido dirigir-se a ele. Quem ousasse perdia a cabeça. Daí, bem antes da guilhotina, surgiu o verbo decapitar, que significa cortar a cabeça. Que medão!
Enrascada
Como fazer? Se, no auge da paixão, a amada dissesse ao monarca “te amo”, a cabeça dela rolava. Se o médico perguntasse ao soberano o que estava sentindo, não recebia resposta. A degola vinha antes. O que fazer? O Conselho de Sábios se reuniu. Nasceu aí o jeitinho brasileiro. A mágica era esta: ninguém falaria ao rei, mas à majestade do rei. Chamá-lo-iam de Vossa Majestade. As pessoas se dirigiam ao rei sem se dirigir a ele.
O coroado ficou feliz. Os bajuladores, que existiam desde então, começaram a inventar pronomes. Dirigiam-se à excelência do rei, à magnificência do rei, à senhoria do rei. E por aí vai. Os nobres, invejosos, reivindicaram privilégios semelhantes. O clero também. Generoso, o rei se satisfez com a majestade. Os outros que se entendessem com a partilha dos demais.
Partilha
Oba! Príncipes ficaram com alteza. Reitores, com magnificência. Cardeais, com eminência. Sacerdotes em geral, com reverendíssima. Altas autoridades do Estado, com excelência. Funcionários públicos, com senhoria. E o papa? O pontífice contentou-se com santidade.
Concordância
“Vossa Majestade é divino. Sou sua devota”, dizia a futura rainha. Reparou? A namorada sabida fazia a concordância como manda a gramática. Ela se dirigia à majestade do amado. Por isso o verbo (é) e o pronome (sua) estão na 3ª pessoa. Vossa Excelência, Vossa Senhoria & cia. exibida jogam no mesmo time.
Pessoa
Vossa Excelência ou Sua excelência? Depende. Vossa Excelência é o ser com quem se fala. Sua Excelência, de quem se fala: Cumprimento Vossa Excelência pelo belo gesto. O advogado dirigiu-se a Sua Excelência com o respeito habitual.
Jeitinho
E o adjetivo? Não deveria concordar com majestade, substantivo feminino? Sim. Mas quem ousaria chamar o rei, tão machão, de divina? Deu-se outro jeito. Criou-se a silepse, figura que permite seja feita a concordância com a ideia, não com a palavra. O adjetivo concorda com o sexo da pessoa, não com o substantivo: Sua Majestade, a rainha Elizabeth, é amada pelo povo. Sua Majestade, o rei Gustavo, também é amado.
Bolsonaro
É excelência pra cá. Magnificência pra lá. Eminência pracolá. Eta coisa velha! O mofo centenário incomodou o presidente. Sua Excelência usou a caneta Bic e pôs fim aos salamaleques. Acabou com o tratamento cerimonioso a autoridades. Excelências & cias. entram na vala comum. Viram senhor e senhora. Como diz a Constituição, todos são iguais perante a lei. Mas a iniciativa só vale para o Executivo. Legislativo e Judiciário não estão nem aí. O tempo passou na janela, só Carolina não viu.
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