“O futebol não tem mistério. Você é que faz o mistério do futebol.”
Garrincha
Inspiração truncada
Eram 22h de quarta-feira. A turma se sentou diante da TV. Queria saber as notícias do dia com comentários inteligentes. O assunto era as consequências do sumiço de Jair Bolsonaro depois da derrota nas eleições. O título foi inspirado no poema “E agora, José?”, de Drummond. Mas, ao escrevê-lo na telinha, foi um banho de água fria. A frase apareceu assim: “E agora Jair”. Duas faltas: a vírgula do vocativo e o ponto de interrogação.
O marginal
O vocativo é o marginal da oração. Não faz parte dos termos essenciais, integrantes ou acessórios. Por isso vem sempre – sempre mesmo – separado por vírgula.
A palavra vocativo vem do latim vocare. Significa chamar. Pertence à mesma família de vocação (chamamento do coração). Seguir a vocação é atender a voz interior. Ouvir o apelo da alma. “É feliz quem faz aquilo de que gosta”, dizem os psicólogos.
Olá!
Sempre que você se dirigir a alguém, não duvide. Estará usando o vocativo. “Paulo, tome banho”, manda a mãe. Paulo é o vocativo. “Alô, Sílvio, tudo bem?”, diz Maria ao telefone. Sílvio é o vocativo. “Senhor Diretor”, começa o ofício com o vocativo.
Truque
Há um truque para identificar esse termo arredio. Antepor-lhe o ó: (ó) Maria, vamos conversar? Vem cá, (ó) meu filho. Presidente, posso lhe fazer uma sugestão? Acreditem, (ó) leitores, ser claro é a maior qualidade do estilo.
Literatura
A literatura usa e abusa do chamamento. “Deus, ó Deus, onde estás que não me escutas?”, pergunta Castro Alves em Vozes d’África. “Tu choraste em presença da morte? Em presença de estranhos choraste? Não descende o covarde do forte. Tu, covarde, meu filho não és”, escreve Gonçalves Dias em I-Juca Pirama. “Entra, minha filha, senão vais virar prostituta”, ameaça a experiente senhora. “Deus te ouça, minha mãe, Deus te ouça”, responde a moça assanhada do poema de Ascenso Ferreira.
“E agora, José?”, pergunta Drummond. Foi aí que a CNN pisou a bola. Esqueceu-se de que Jair é vocativo. Marginal, exige a vírgula sim, senhores.
Correspondência
Nas cartinhas, nos e-mails, nos bilhetes, o vocativo está presente: Olá, Paulo, Oi, Maria, Caro Luís, Meu amor. Na redação oficial também. O ato de correspondência se abre com ele: Senhor Presidente da República, Senhor Chefe, Senhor Diretor.
Redação oficial
Houve tempo em que a correspondência do governo dava margem à criatividade. O redator podia separar o vocativo por dois pontos (Senhor Diretor, vírgula (Senhor Diretor,) ou simplesmente não usar nada (Senhor Diretor). Hoje as coisas mudaram. O Manual de redação da Presidência da República recomenda o emprego da vírgula.
E a letra maiúscula depois da vírgula? Sempre que iniciar parágrafo, usa-se a grandona — mesmo depois da vírgula do vocativo. Assim se convencionou. Manda quem pode. Obedece quem tem juízo.
Ó e oh!: quando usar
O ó aparece no vocativo, quando a gente se dirige a alguém:
Deus, ó Deus, onde estás que não me escutas?
Até tu, ó Brutus, meu filho?
Seu pai morreu? Morreu pra você, ó filho ingrato.
O oh! é interjeição. Tem vez quando a gente fica de boca aberta de admiração ou espanto:
Oh! Que linda voz!
Oh! Que trapaceiro! Quem diria, hem?
Oh! Que surpresa!
Ó Paulo, não entendi seu oh! de espanto. Pode me explicar?
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