Dizem que a língua é um sistema de ciladas. Vários argumentos provam a tese. Um deles: o verbo reaver. Ele tem toda a pinta de derivado do verbo ver. Mas não é. A cara inocente engana gente boa. É o caso de redatores do jornal. Na página 33 da edição de quarta, lá estava, escancarado em título: “Atriz reavê documentos”. Leitores bateram os olhos no texto. Arrepiaram-se dos pés à cabeça. Choveram ligações, fax e e-mails para a direção do jornal. Mineiros que freqüentaram boa escola, todos estranharam o tropeção. A pergunta era uma só:
— O que houve?
“Deus no céu e a família na Terra”, eis o mandamento da língua. Mas muitos esquecem a lei maior. Não dá outra. Trocam o pai da palavra. É o que aconteceu com o jornal. Você sabe quem é o paizão de reaver? Acredite. Reaver é filhote de haver. Significa haver de novo (re-haver), recobrar, recuperar. Veja: A casa de Maria foi assaltada. Os ladrões levaram dólares e jóias. A polícia os prendeu. Mas não conseguiu reaver nada.
Preguiça
Reaver tem um grande defeito. É preguiçoso que só. Por isso, joga no time dos verbos defectivos. Não se conjuga em todos os tempos e modos. Com ele, só têm vez as formas em que aparece o v, de haver. No presente do indicativo, por exemplo, apenas o nós e o vós ganham passagem: nós reavemos, vós reaveis.
A razão? Filho de peixe sabe nadar. O presente do indicativo do verbo haver só tem v em duas pessoas (eu hei, tu hás, ele há, nós havemos, vós haveis, eles hão). Daí o tropeço do jornal. O redator pensou o que muitos pensam. O reaver seria filhote de ver. Não é.
O indolente não tem o presente do subjuntivo. (Que eu reaveja? Nem pensar!) Mas exibe todas as pessoas do passado e do futuro: reouve, reouvemos, reouveram; reavia, reavias, reavíamos; reaverei, reaverão; reaveria, reaverias, reaveríamos, reaveriam; reouver, reouveres, reouvermos; reouvesse, reouvéssemos.
E por aí vai.
Eis exemplos do emprego do inimigo do pesado: O pai reouve a confiança do filho. Sempre que possível, ele reavia o dinheiro perdido no jogo. Ainda reaverei os pontinhos que perdi na prova. Quando reouver as jóias, Maria vai vendê-las. Se eu reouvesse minha herança, faria longa viagem pelos cinco continentes.
Sem choro nem vela
Cuidado com as tentações. Reavê, reaviu, reaveja não existem. Seriam derivados de ver. E reaver vem de haver. Mas não fique triste. Eles não fazem falta. Recuperar ou recobrar os substituem numa boa. “Atriz recupera documentos” poderia ser o título da matéria que gerou tanta polêmica. Melhor não?
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