Deixem a ortografia em paz

Compartilhe

JAIME PINSKY

Historiador, professor titular da Unicamp, diretor da Editora Contexto, autor de Por que gostamos de história, entre outros livros   Do Senado, duas notícias, uma boa e outra má. A boa: parece que temos senadores preocupados com o ensino de português. A má: querem alterar outra vez nossa ortografia, agora radicalmente, com a esperança de que, com isso, alunos possam obter melhores resultados na aprendizagem da língua. Criaram até uma comissão, com o objetivo de aplicar o acordo ortográfico (o mesmo que, na prática, já está em vigor), e para fazer com que “se escreva como se fala”.

Além de não ser boa, a ideia é impraticável. Fico curioso a respeito de como vai se escrever, por exemplo, aquilo que na ortografia atual é denominada Estação das Barcas (lá na Praça Mauá, no Rio de Janeiro). Para “fazer justiça” à pronúncia, deveríamos grafar “Ijtação daj Barcaj” ou Ixtação dax Barcax”? Fora do Rio, talvez “Istação”, ou ainda “Stação”, como muita gente fala, já que poucos dizem “estação”, além dos curitibanos…

E como redigir o quarto mês do ano? “Abriu”, como dizem muitos brasileiros, “abril”, como diriam alguns gaúchos, ou “abrir”, como parte dos paulistas, mineiros, paranaenses e outros pronunciam? Cabe ao leitor pensar em outros exemplos.

Pesquisas excelentes, feitas por linguistas sérios (Thais Cristófaro, Ataliba Castilho, Stella Maris Bortoni, entre muitos outros) têm mostrado enorme variação linguística até no chamado português culto. Qual seria, pois, o ponto de partida oral, para sua suposta reprodução em texto escrito? Obrigar todos a pronunciar as palavras de uma só maneira, ou ter uma infinidade de representações gráficas para diferentes expressões fonéticas?

Mas isso não é tudo. Como costuma lembrar Carlos Alberto Faraco, a língua escrita não é mero reflexo da língua falada: ambas constituem meios autônomos de manifestação do saber linguístico. A ortografia é uma representação abstrata e convencional da língua. E é fundamental que o sistema ortográfico seja estável e que, independentemente da variação na fala, haja uma única representação gráfica por palavra. Do contrário, não teríamos como reconhecer palavras que fossem escritas em outro tempo (ou até em outro espaço). Seria o caos.

As línguas, patrimônios culturais da humanidade, possuem história. Elas resultam de práticas sociais que as moldaram para que aqui chegassem do jeito que são. São fatores fonológicos, morfológicos, etimológicos e de tradição cultural que fizeram com que nossa língua seja grafada do jeito que é. Línguas também têm parentesco, e nossa origem latina comum permite que possamos ler com relativa facilidade (mesmo que não falemos) outras línguas como o espanhol, o francês e o italiano. Mesmo o inglês, graças ao enorme contingente de palavras de origem latina, fica mais acessível a partir de grafias semelhantes. Arrancar as raízes de nossa ortografia seria romper com importantes aspectos de nossa identidade histórica.

Temos ainda o aspecto prático, talvez o mais relevante de todos. Quando foi imposto o último acordo ortográfico (que, absurdamente, teve sua implantação oficial postergada), toda a indústria editorial movimentou-se para preparar novas edições de todo o seu acervo. Dezenas de milhares de títulos sofreram as mudanças exigidas pelo MEC e outros órgãos governamentais e privados. Gramáticas e dicionários foram refeitos; tratados foram revisados; livros infantis, alterados; manuais, reeditados. Uma nova reforma seria desastrosa, não só para as editoras, mas também para os governos, que teriam que substituir todas as bibliotecas novamente. Trata-se de muito dinheiro jogado fora, possivelmente levando à falência muitas casas editoriais importantes, promovendo gasto desnecessário de verbas públicas, tornando obsoletos bilhões de livros escolares e universitários.

E há, ainda, o aspecto da exclusão social. Quando uma reforma ortográfica é implantada, grande parte dos adultos se torna analfabeta, já que eles nem sempre conseguem reter e utilizar as novas regras inventadas por capricho de meia dúzia de “sábios”, ou de desavisados.

A preocupação é com a qualidade do ensino? Busquem-se soluções adequadas, fazendo com que excelentes pesquisas realizadas por importantes grupos de especialistas possam chegar até as escolas brasileiras, por meio de amplo programa nacional de qualificação de professores do ensino fundamental. Se houver, de fato, intenção de melhorar o ensino no Brasil, está cheio de gente boa pronta para ajudar.

Dad Squarisi

Publicado por
Dad Squarisi

Posts recentes

  • Dicas de português

Dicas de português: Páscoa, coelhinhos e chocolate

A língua é pra lá de sociável. Conversa sem se cansar. E, no vai e…

1 ano atrás
  • Dicas de português

Os desafios da concordância com porcentagem

Porcentagem joga no time dos partitivos como grupo, parte, a maior parte. Aí, a concordância…

2 anos atrás
  • Dicas de português

Você sabe a origem do nome do mês de março?

O nome do mês tem origem pra lá de especial. O pai dele é nada…

2 anos atrás
  • Dicas de português

O terremoto na Turquia e a língua portuguesa

Terremoto tem duas partes. Uma: terra. A outra: moto. As quatro letras querem dizer movimento.…

2 anos atrás
  • Dicas de português

Anglicismos chamam a atenção na língua portuguesa

As línguas adoram bater papo. Umas influenciam as outras. A questão ficou tão banalizada que…

2 anos atrás
  • Dicas de português

A simplicidade na escrita dos nomes de tribos indígenas

Nome de tribos indígenas não tem pedigree. Escreve-se com inicial minúscula (os tupis, os guaranis,…

2 anos atrás