De fujões e jeitos de dizer

Compartilhe

Roger Pinto Molina é senador fugitivo ou fugitivo senador? A questão ocupa as redações desde domingo. O homem é senador. Pediu asilo ao Brasil. Depois de 455 dias à espera de salvo-conduto pra deixar La Paz, caiu fora. Em operação nebulosa, atravessou o território do país vizinho e entrou no brasileiro. O governo boliviano divulgou nota na qual chama o atrevido de fugitivo.

Daí a questão: ele é senador fugitivo ou fugitivo senador? A dúvida se explica. As palavras são infiéis por natureza. Mudam de classe gramatical como nós mudamos de roupa ou de penteado. Verbo vira substantivo, substantivo vira adjetivo, adjetivo vira advérbio, advérbio vira sabe lá o quê.

Vira-casacas

Machado de Assis conhecia as artimanhas da língua. Em Memórias póstumas de Brás Cubas, escreveu: “Não sou um autor defunto, mas um defunto autor”. O trocadilho deu nó nos miolos dos leitores. Parecia quebra-cabeça. O que o homem quis dizer com a brincadeirinha?

A resposta está na colocação das palavras na frase. Pela índole da língua, o substantivo vem na frente do adjetivo. Na pegadinha, Machado lançou mão desse conhecimento. Tradução:

Não sou um autor (substantivo) defunto (adjetivo) = não sou um escritor que morreu. Em outras palavras: não sou uma pessoa que escreveu a obra em vida. Sou um defunto (substantivo) autor (adjetivo) = sou um escritor que escreveu a obra na outra vida, depois de morto. Como? Ah, essa é outra história. Melhor ler o livro.

De volta ao boliviano

E daí? A língua é farta de exemplos semelhantes ao de Machado: menino homem, homem menino, mulher cobra, homem aranha. E por aí vai. São dois substantivos. Um funciona como adjetivo. Qual? O segundo:

Menino (substantivo) homem (adjetivo) = criança que se comporta como adulto. Homem (substantivo) menino (adjetivo) = homem de comportamento infantil. Mulher (substantivo) cobra (adjetivo) = mulher que tem características de ofídio. Homem (substantivo) aranha (adjetivo) = homem cujas habilidades se parecem às de aracnídeo.

Resumo da opereta

Roger Molina é senador (substantivo) fugitivo (adjetivo). Ele era excelência no parlamento boliviano. Caiu em desgraça. Cobra criada, deu no pé. Quem pagou a conta? O ministro das Relações Exteriores do Brasil. Antônio Patriota perdeu o posto. Acusação: quebra de hierarquia.

Dad Squarisi

Publicado por
Dad Squarisi

Posts recentes

  • Dicas de português

Dicas de português: Páscoa, coelhinhos e chocolate

A língua é pra lá de sociável. Conversa sem se cansar. E, no vai e…

2 anos atrás
  • Dicas de português

Os desafios da concordância com porcentagem

Porcentagem joga no time dos partitivos como grupo, parte, a maior parte. Aí, a concordância…

2 anos atrás
  • Dicas de português

Você sabe a origem do nome do mês de março?

O nome do mês tem origem pra lá de especial. O pai dele é nada…

2 anos atrás
  • Dicas de português

O terremoto na Turquia e a língua portuguesa

Terremoto tem duas partes. Uma: terra. A outra: moto. As quatro letras querem dizer movimento.…

2 anos atrás
  • Dicas de português

Anglicismos chamam a atenção na língua portuguesa

As línguas adoram bater papo. Umas influenciam as outras. A questão ficou tão banalizada que…

2 anos atrás
  • Dicas de português

A simplicidade na escrita dos nomes de tribos indígenas

Nome de tribos indígenas não tem pedigree. Escreve-se com inicial minúscula (os tupis, os guaranis,…

2 anos atrás