Como é que se diz?

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A língua não é a casa da mãe joana. Nem a casa da sogra. Muito menos a casa de Irene. As três casas têm um denominador comum. É a falta de regra. Ali, pode-se tudo. Dorme-se a qualquer hora e em qualquer lugar. Acorda-se quando Deus permite. Mais: joga-se roupa no chão. Deixam-se copos espalhados pelos quatro cantos de salas e quartos. Os cinzeiros estão sempre cheios. Os banheiros, alagados. O fogão expõe panelas destampadas. A pia, montanhas de pratos. A mesa, toalhas manchadas.
  No idioma, a bagunça ensaia atrevimentos. Mas não alça voo. Gramáticas e dicionários põem ordem no caos. Quem tem a duplinha por perto previne tropeços fonéticos, morfológicos e sintáticos. Basta consultar. É aí que a porca torce o rabo. Há ocasiões em que se torna difícil recorrer ao pronto-socorro. Vale o exemplo da Beatriz Saldeira. Ela terminou o curso de comunicação. Candidatou-se a uma vaga de repórter na TV. 

O teste
Bonita, fotogênica e dona de bela voz, ela tinha todas as condições de abocanhar a vaga. Só precisava fazer o teste. A prova consistia em ler meia dúzia de frases. Microfone na mão, Beatriz deu voz a estas sentenças:
Prêmio Nobel de Economia é crítico da globalização.
Costumo tirar uma cópia xerox dos meus documentos antes de viajar.
Governos ibero-americanos aliam-se na luta contra o terror.
As praias são o lazer mais democrático do país. Pobres e ricos são igualmente recebidos. A entrada é gratuita.
Os jogos da Seleção baterão recordes de audiência semana.
O criminoso agiu com dolo ao disparar tiros contra duas pessoas. Em outras palavras: ao atirar, ele tinha a intenção de matar e assumiu o risco de produzir esse resultado.
Nos contratos, é obrigatória a rubrica das partes em todas as páginas.
  Moleza? Nem tanto. Em cada uma há uma armadilha. São pronúncias viciadas que, de tão ouvidas, parecem certas. Mas certas não são. A bela Beatriz caiu em todas. Perdeu o emprego. Mas não a esperança. Pediu ajuda à coluna para fixar o jeitinho nota dez de dizer. 

Macetes
  Pediu? Levou. Eis macetes para se lembrar sempre:
  1. Nobel rima com Mabel e papel. A sílaba tônica é a última. O Brasil nunca ganhou o prêmio. Mas não desiste. Quer porque quer que o Nobel bata à porta desta alegre Pindorama. É esperar pra ver.
  ***
  2. Xerox ou xérox? A gente ouve as duas formas. A empresa tira proveito da confusão:
  — O importante é que falem na marca, brincam diretores e funcionários.
  Eles se esqueceram de um pormenor. Em português há um pacto entre as palavras. As terminadas em x são oxítonas. O acento tônico cai na última sílaba. É o caso de inox, pirex, xerox.
  No reino das letras como no dos homens, há os rebeldes. Alguns vocábulos querem ser diferentes. Desrespeitam o trato. Passam para o time das paroxítonas. Tudo bem. Só que precisam do acento. O sinalzinho gráfico avisa que eles viraram a casaca. Valem os exemplos de Félix, ônix, tórax, fênix.
  ***
  3. Ibero faz parzinho com severo e Antero. Paroxítona, a fortona cai na penúltima sílaba.
  ***
  4. Gratuito joga no time de circuito e fortuito. O ui forma ditongo. Sem acento, o parzinho se pronuncia numa só emissão de voz. Não se desgruda. É como unha e carne. Se separar um, dóiiiiii.
  ***
  5. Recorde tem origem inglesa. Ao se naturalizar brasileira, ganhou pronúncia tupiniquim. Tornou-se paroxítona. Ficou igualzinha ao recorde do verbo recordar. A sílaba tônica é a penúltima (cor). Pertence à família de concorde e lorde: re-cor-de, con-cor-de, lor-de.
  ***
  6. Dolo — som aberto ou fechado? Lembre-se de colo e solo. Os três são parceiros. Pronunciam-se do mesmo jeitinho.
  ***
  7. Rubrica é grande vítima dos falantes. Gente importante ou gente boa como nós cometem silabada sem cerimônia. Pronunciam rubrica como se tivesse acento no u. Mas ela não tem. É paroxítona e não abre. A sílaba fortona é bri.

Ufa
  É isso. Nobel, xerox, ibero, gratuito, recorde, dolo e rubrica não são nenhum bicho de sete cabeças. Duvida? Pronuncie-as em voz alta. Você vai acertar todas. Vá em frente.

Dad Squarisi

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Dad Squarisi

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