É uma festa. A Biblioteca Nacional de Brasília recebe uma exposição pra lá de contemporânea. Sobram atrações e atividades para ensinar a história da escrita e a importância da leitura. Lá estão projeções, vídeos, imagens em 3D, obras para ler deitado em rede com vista para a Esplanada dos Ministérios.
Brasilienses prestigiam a mostra. Circulam, brincam, interagem. Mas um pormenor lhes chama a atenção. Trata-se do nome do evento — “Eu Leitor”. A questão levantada: falta uma vírgula? Uns afirmam que sim. Outros dizem que não. E daí?
Restritivo
A vírgula desempenha vários papéis. Um deles é separar termos explicativos. Pra entender a história, vale seguir o conselho do esquartejador. “Vamos por partes”, diz ele. Comecemos pelos termos restritivos. Eles limitam o sentido do nome. Tornam-no menos abrangente. Veja:
Os alunos tiram boas notas.
A frase diz que todos os alunos tiram boas notas. Mas sabemos que há alunos e alunos. Alguns brilham. Outros tropeçam. Para fazer as pazes com a verdade, convocamos um termo restritivo:
Os alunos estudiosos tiram boas notas.
Viu? O adjetivo dá um recado claro: diz que não são todos os alunos que tiram boas notas. Só os estudiosos chegam lá.
Explicativo
O homem tem alma imortal.
A frase diz que todos os seres humanos têm alma imortal. Certo? Certo. Se acrescentarmos o adjetivo mortal, ele não restringirá o sentido do nome. Apenas o reforçará:
O homem, mortal, tem alma imortal.
Deu pra entender? A presença do termo não acrescenta nada a homem. Apenas reforça o que sabemos.
Compare
O presidente da República, Michel Temer, mora no Palácio Jaburu.
(O Brasil só tem um presidente da República. Se não sabemos quem é, o Google nos diz. Michel Temer é termo explicativo. Pode ser retirado sem prejuízo da informação. Daí estar separado por vírgulas.)
O ex-presidente da República José Sarney viajou ontem.
(Quantos ex-presidentes o Brasil tem? Vários. Se não dizemos a quem nos referimos, deixamos o leitor numa baita enrascada. José Sarney é termo restritivo. Não pode ser cortado. Nem separado por vírgulas.)
Mais exemplos
Machado de Assis, escritor brasileiro, escreveu Dom Casmurro.
O escritor brasileiro Machado de Assis viveu no século 19.
A capital do Brasil, Brasília, fica no Planalto Central.
A ex-capital do Brasil Salvador atrai muitos turistas no carnaval.
A questão
O problema levantado pela exposição leva à pergunta: leitor é restritivo ou explicativo? Pra responder, precisamos pensar no termo a que ele se refere — eu. Só há um eu. Daí nos requerimentos aparecer esta forma:
Eu, João da Silva, brasileiro, casado, funcionário público, venho requerer…
Eu, brasileiro, casado, funcionário público…
Eu, leitor, sou rato de biblioteca.
Licença, minha língua?
Voltemos à exposição. “Eu leitor” dá título à mostra. O artista apresentou as duas palavras de forma diferente. Leitor aparece em negrito. Eu não tem o reforço. Há um espaço maior entre os dois vocábulos. O vazio no lugar da vírgula proporciona um efeito visual de união entre o pronome e o substantivo. A língua dá nome ao recurso. É licença poética. A mesma licença a que Drummond recorreu ao escrever “Cacilda Becker morreram”.
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