Assim falava minha avó

Compartilhe


Tereza Halliday

Artesã de Textos (terezahalliday@yahoo.com)


Chamava resfriado de defluxo e ladrão de gatuno ou larápio.  Criança desobediente era mal-ouvida. Piada, gracejo, era pilhéria. Político desavergonhado? Um salafrário. Cacete designava coisa chata, tediosa; costurar era coser (com s, evidentemente). Tinha nome preciso para mal-estar indefinido: macacoa. O dicionário o registra como “doença sem importância; indisposição”.   Mandava apagar com borracha um erro escrito a lápis, dizendo: “Raspe”.  A fim de que lhe entregassem um objeto, pedia assim: “Dê cá…”

Misturar numa mesma frase a segunda e a terceira pessoa do singular –  o “tu” e o “você”-  era “coisa de gente inculta em geral e mau hábito de cariocas em particular”. Isto num tempo em que tal destempero de concordância ainda não era perpetrado por brasileiros de norte a sul.  Pronunciava os  infinitivos dos verbos com os corretos erres finais: partir, querer, contar… O ditongo “ei” era pronunciado em sua plenitude: janeiro, primeira.  Corrigia imediatamente  se avacalhássemos para “janero” e “primero”. Nunca, jamais em tempo algum de seus 70 anos de vida usou o pronome demonstrativo “esse” em lugar de “este”. E não tinha comiseração por gente letrada que usasse descuidadamente o português.

Pedante? Empolada? De jeito nenhum. Apenas dava testemunho da riqueza do idioma nacional como instrumento de precisão ou de linguagem figurada. Seu uso natural e competente do vernáculo muito me beneficiou, desde tenra idade.  Foi professora de mão cheia, como tantas da sua geração. Formada pelo lendário Colégio Santa Margarida,  Artemísia Sampaio Tavares  tornou-se inesquecível para todos os seus ex-alunos, seja da escolinha do Arruda, seja filhos e netos.  De uma carta, entre muitas que me escreveu quando passamos um ano separadas, destaco este primor de redação: “Notícias e novidades, aqui t´as envio cuidadosamente para não esquecer qualquer”. Meu saudoso mestre Sebastião de Albuquerque e minha sempre admirada professora Luzinete Pessoa, haveriam de dar-lhe nota dez.

Sob fortíssima influência de minha avó, ainda sinto gastura, arrepios, sustos e desgosto com o atual descalabro (outro termo de sua preferência) no português escrito por aí afora, em todas as classes sociais.  Nem ouso reclamar da linguagem oral, mais permissiva, mais informal, mais flexível. Não obstante, mesmo a tolerância linguística tem limites.  Quando ouço “Pode vim”, parece que estou vendo seu olhar consternado seguido de correção maternal. Consola-me saber que Dad Squarisi, perita em língua portuguesa e titular  da coluna Dicas de Português,  seria também implacável, avisando que “Deus castiga” tal despautério.




Dad Squarisi

Publicado por
Dad Squarisi

Posts recentes

  • Dicas de português

Dicas de português: Páscoa, coelhinhos e chocolate

A língua é pra lá de sociável. Conversa sem se cansar. E, no vai e…

1 ano atrás
  • Dicas de português

Os desafios da concordância com porcentagem

Porcentagem joga no time dos partitivos como grupo, parte, a maior parte. Aí, a concordância…

2 anos atrás
  • Dicas de português

Você sabe a origem do nome do mês de março?

O nome do mês tem origem pra lá de especial. O pai dele é nada…

2 anos atrás
  • Dicas de português

O terremoto na Turquia e a língua portuguesa

Terremoto tem duas partes. Uma: terra. A outra: moto. As quatro letras querem dizer movimento.…

2 anos atrás
  • Dicas de português

Anglicismos chamam a atenção na língua portuguesa

As línguas adoram bater papo. Umas influenciam as outras. A questão ficou tão banalizada que…

2 anos atrás
  • Dicas de português

A simplicidade na escrita dos nomes de tribos indígenas

Nome de tribos indígenas não tem pedigree. Escreve-se com inicial minúscula (os tupis, os guaranis,…

2 anos atrás