As sete mudanças da língua

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Istambul é mais antiga que o rascunho da Bíblia. Quando Jesus nasceu, a bela cidade turca tinha 667 anos. Os séculos lhe deram nomes diferentes. O primeiro, Bizâncio. O segundo, Constantinopla. Com essa denominação, tornou-se, em 330, a capital do Império Romano do Oriente. O imperador não a escolheu por acaso. Elegeu-a porque queria uma urbe à imagem e semelhança de Roma — com sete colinas. Batizou-a de Nova Roma. O povo a apelidou de Cidade das Sete Colinas. No emblema da Istambul de hoje, as colinas estão lá. São sete triângulos.

Mudanças não são privilégio de cidades. Nem de pessoas. Nem de animais. Nem de coisas. Os adeptos da transformação inspiram-se na natureza. Citam o suceder do dia e da noite, das estações do ano, das fases da Lua. Citam, também, o ciclo da vida humana – nascemos, crescemos, morremos. No percurso, quem não andava anda, quem não falava fala, quem tomava só leite passa a comer cereais, carnes, frutas e verduras.

A língua joga no time dos mutantes. Instrumento de comunicação das pessoas, muda conforme mudam os tempos e os falantes. Concordâncias, regências, colocações, significados trocam o passo conforme a música. A grafia não fica atrás. Letras, acentos, hifens, travessões são inconstantes como o coração dos homens. Quer exemplos? Eis sete – o número das colinas que fizeram de Istambul Istambul.

Nomes próprios viram comuns

É o óbvio dos óbvios. Os substantivos próprios se escrevem com inicial grandona — João, Rafael, Maria, Pará, Colônia, Brasil. Às vezes, porém, entram na composição de substantivos comuns. O resultado é um só. Tornam-se vira-latas: joão-de-barro, castanha-do-pará, água-de-colônia, pau-brasil, banho-maria.

Norte, Sul, Leste, Oeste, quando pontos cardeias, são nomes próprios. Mas, se definem direção ou limite geográfico, cessa tudo que a musa antiga canta. As moçoilas põem o rabinho entre as pernas e entram na vala comum: O leste dos Estados Unidos tem grande influência latina. O carro avançava na direção sul. Cruzou o país de norte a sul, de leste a oeste.

Hifens caem

Pé de moleque, mão de obra, tomara que caia, quarto e sala, maria vai com as outras se escreviam com hífen. Veio a reforma ortográfica. Cassou o tracinho que ligava palavras compostas de três ou mais vocábulos unidas por um elo – preposição, conjunção, pronome. Exceções? Duas. A primeira: palavras do reino animal ou vegetal foram poupadas. É o caso de joão-de-barro, cana-de-açúcar, pé-de-milho, bicho-de-pé, pimenta-do-reino, castanha-do-pará. A outra: água-de-colônia, cor-de-rosa, pé-de-meia, arco-da-velha, mais-que-perfeito escaparam da degola.

Tracinhos surgem

Blá-blá-blá, tim-tim, zum-zum & cia. se escreviam coladinhos. A reforma ortográfica os separou. Vocábulos onomatopaicos formados ou não por elementos repetidos agora se grafam com hífen. Assim: lenga-lenga, tique-taque, toque-toque, trouxe-mouxe, quem-quem.  

Sinais mudam

O hífen tinha dois papéis bem definidos. Um, vira-lata: ligar o pronome ao verbo (vende-se). O outro, mágico: juntar duas palavras independentes e formar uma terceira, sem parentesco com as originais. Vale o exemplo de beija-flor. Beija é forma do verbo beijar. Flor, o presente colorido que as plantas nos dão. Ligada pelo tracinho, a dupla dá nome ao pássaro que seduz pela leveza e encanto.

O travessão ligava vocábulos sem formar palavras novas (Ponte Rio—Niterói, trecho Brasília—Recife, voo Nova Iorque—Tóquio). A reforma cassou o grandão nesses casos. Agora, só o pequenino tem vez: Ponte Rio-Niterói, trecho Brasília-Recife, voo Nova Iorque-Tóquio.  

Acentos somem

O hiatos oo e eem perderam o chapéu. Vôo, corôo, abençôo & cia. viraram voo, coroo, abençoo. Lêem, vêem, crêem, dêem & derivados agora se escrevem leem, veem, creem, deem. Os ditongos abertos éi e ói mandaram o acento sumir das paroxítonas. Em vez de idéia, paranóico e jóia, grafe ideia, paranoico, joia. Acentos diferenciais se foram nas paroxítonas. Doravante, ele para, polo norte e sul, pelo do animal, pera grafam-se sem grampos ou chapéus. Dois diferenciais ficaram pra contar a história: ele pôde e o do verbo pôr.  

Alfabeto cresce

“Crescei e multiplicai-vos”, ordenou o Senhor. O alfabeto obedeceu. Incorporou três letras. O k, o w e o y, até há pouco penetras na língua, tornaram-se irmãozinhos legítimos das 23 anteriores. O abecedário português passou a ser este: a, b, c, d, e, f, g, h, i, j, k, l, m, n, o,  p, q, r, s, t, u, v, w, x, y, z.

Dad Squarisi

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