As letras usam máscara

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É carnaval. Fantasias pedem passagem. Com elas, máscaras fazem a festa. Invadem as ruas e exibem caras famosas ou sonhadas. Mulheres viram homens. Homens, mulheres. Meninos ganham os poderes do Super-Homem, a destreza do Homem Aranha ou a graça do Mickey. Meninas, a força da Pucca, a capacidade das Superpoderosas ou os malabarismos da Hannah Montana. Gente comum se transforma em celebridade. Anônimos invisíveis se tornam foco de mil olhares.
  Travestir-se não constitui privilégio humano. Máscaras fazem parte do mundo das letras. As 26 criaturas do alfabeto não são 26. Graças aos disfarces, viram multidão. Ora aparecem manuscritas. Ora impressas. Ora cursivas. Ora por extenso. Ora maiúsculas. Ora minúsculas. Ora com acento. Ora livres e soltas. Ora representam um som Ora outro ou outros. Em suma: as letras têm o dom da multiplicação. 

Cinco são doze
  O português tem cinco vogais (a, e, i, o u). Mas, com os recursos da camuflagem, a meia dezena vira uma dúzia. O a, por exemplo, soa oral (casa), soa nasal (irmã), soa aberto (sofá), soa reduzido (folha). O e não fica atrás. Ora se escuta oral (belo), ora nasal (bem), ora aberto (café), ora fechado (você), ora reduzido (bate).
  A versatilidade do quinteto enriquece a língua. O português é foneticamente muito mais rico que o espanhol. O idioma de Cervantes tem cinco vogais. Avessas a disfarces, as duronas soam cinco. Resultado: nós entendemos melhor o espanhol do que eles o português. Hispanofalantes não conseguem distinguir vovó de vovô. Sem ter sons abertos, eles só escutam os fechados. Pra nossos vizinhos, vovô e vovó são vovô. Entenda quem quiser. Ou puder.

Jogo de disfarces
  As consoantes não fogem à regra. São loucas por disfarces. Com elas, retornam os tempos das saturnais romanas. Conhece? Eram festas que celebravam a volta da primavera. A estação simboliza o renascer da natureza depois do rigor do inverno. Era período alegre. Os servidores públicos entravam em recesso. Os tribunais fechavam as portas. Nenhum criminoso podia ser punido. Libertavam-se os escravos pra assistir aos festejos. As famílias ofereciam banquetes.
  Durante as celebrações, invertiam-se posições sociais. Os escravos davam ordens aos senhores. Os senhores lhes serviam iguarias à mesa. Todos se mascaravam pra se sentirem mais à vontade. Há quem diga que as máscaras nasceram aí. Verdade ou fantasia, uma coisa é certa. As consoantes adoraram a indumentária. Usam-na às claras. 

Fantasias multiplicadoras
  Consoantes têm várias leis. Uma delas: quanto mais confusão melhor. Pra obedecer à determinação tão divertida, nada mais adequado que usar e abusar das máscaras. Com elas, uma letra multiplica os sons. E, claro, dá nó nos miolos dos pobres mortais. Vale o exemplo do x. A danadinha adora trocar os disfarces. Em certas palavras, pronuncia-se ch (enxoval). Em outras, z (exame). Em outras, ainda, s (excelência). Chega? Não. Há os casos em que a gloriosa soa ks (táxi). Ufa!
  O s, então, abusa. Salta de galho em galho com tal destreza que faz inveja a Tarzã. No começo da palavra, soa cê (sala). Entre duas vogais, z (pesquisa). É aí que a porca torce o rabo. Caprichoso, o versátil quer manter a originalidade entre duas vogais. Impossível? Ele dá um jeito. Apresenta-se em dose dupla (massa). Mantém a originalidade também quando aparece entre vogal e consoante (cansar). Ops! Em trânsito, ele se exibe entre n e i. Mas soa z. Quem entende? Calma. É carnaval.
  Uma ilustre senhora tem fascínio por fantasias, máscaras e badulaques. Quem é? É a letra c. Seguida de a, o e u, soa k (casa, coisa, cuia). Seguida de e e i, pronuncia-se cê (cedo, cidade). Partidário do s, o c teima em soar cê quando seguido de a, o, u. Recorre, então, à marca que faz o Brasil Brasil. Dá um jeito. Calça um sapatinho e ganha a parada (calçado, aço, açude).

Moral da história
  Mário Quintana disse que a mentira é a verdade que se esqueceu de acontecer. No carnaval das letras, a mentira acontece.

Dad Squarisi

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Dad Squarisi

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