Um consumidor precisou recorrer à Justiça pelo direito de escolher de qual maneira gostaria que um produto com defeito fosse substituído. Embora a legislação de defesa deixe a critério do cliente o que fazer em caso de problemas constatados dentro de três meses, as empresas brasileiras têm dificuldade de cumprir o que determina a norma e querem impor como será a reparação. A decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) publicada em maio deste ano garantiu ao produtor rural Irio Pooz, 51 anos, que ele recebesse uma nova caminhonete e ainda continuasse com o veículo que originou a ação. Não cabe mais recurso.
O problema entre Irio e a concessionária Grand Premier começou em 2008. Na ocasião, ele comprou uma caminhonete modelo Nissan Frontier zero quilômetro. Vinte dias depois, o produtor rural percebeu que a borracha das duas portas do lado direito estavam chapiscadas de tinta. “Eu desconfiei que tinha algo errado. Levei a duas oficinas de conhecidos e me disseram que aquela porta estava repintada porque tinha sido batida”, conta Irio. Com essa informação, Irio foi até a concessionária para trocar o veículo ou desfazer o negócio. “Mas eles disseram que eu não poderia trocar a caminhoneta porque o estrago já tinha sido consertado. Entretanto, eu comprei um carro 0 km, não queria um batido, que, inclusive, desvaloriza o carro”.
Diante do impasse, o gerente da concessionária propôs substituir as duas portas por outras. “Eu não aceitei. Pensei que eles poderiam pegar as portas, colocar em outro carro e enganar outra pessoa”, disse Irio. Sem conseguir trocar o veículo, o produtor rural propôs um abatimento no preço, o que também não foi aceito pela concessionária. Ao deixar o estabelecimento sem resolver o problema, o produtor rural resolveu fazer um laudo técnico na Finatec, da Universidade de Brasília. “O laudo foi uma prova irrefutável do que tinha acontecido. Em nenhum momento, a concessionária questionou o defeito”, explica o advogado de Irio, Nadimir Kayser de Oliveira. “Depois que o laudo saiu, as marcas da batida e do conserto grosseiro ficaram evidentes. Para um leigo, é difícil perceber”, reforça Irio.
Como a concessionária não aceitou receber a caminhonete de volta, Irio continuou usando o veículo até a solução do problema pela Justiça. A ação durou seis anos. “Eles não quiseram receber a caminhonete, então, fiquei usando, já que, como estava em processo judicial, eu não poderia vender”, justificou Irio. Quando saiu a sentença a favor de Irio, representantes da concessionária sugeriram um acordo em que caminhonete seria substituída por uma nova e alegaram que Irio deveria pagar pelo desgaste da antiga proveniente dos anos que o ação judicial correu. “Mas eu não queria apenas a caminhonete nova, isso, eu tinha pedido há seis anos atrás e eles não quiseram. Por fim, após seis meses de acordo, fiquei com os dois veículos e a concessionária pagou também o gasto com o laudo”, conta Irio.
O Correio entrou em contato com a Grand Premier, falou com o gerente de pós -vendas identificado como Ricardo que informou que a equipe do marketing daria uma resposta. Até o fechamento dessa edição, o estabelecimento não enviou posicionamento.
Direito de escolha
A persistência de Irio mostra a dificuldade dos consumidores brasileiros de conseguirem o respeito a direitos básicos. “Em casos como esse, a gente percebe uma ofensa a boa-fé. O consumidor precisa entrar na Justiça e fazer um laudo para mostrar um defeito que deveria ser reparado imediatamente. A gente tem noção de como o tratamento das empresas com o consumidor é desproporcional e que, alguns fornecedores, ainda têm o padrão de discutir em juízo, protelar algo que o consumidor está assegurado em lei”, analisa Ricardo Morishita, diretor de pesquisas e projetos do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e ex-diretor do Departamento de Proteção e de Defesa do Consumidor, do Ministério da Justiça.
“O Código do Consumidor é claro, em caso de defeito, o cliente tem o direito de escolher se ele quer trocar o produto, se quer o dinheiro de volta ou se quer um desconto. A questão é que os fornecedores brasileiros querem impor como o cliente deve trocar um produto que veio estragado”, afirma Ildecer Amorim, advogada especialista em direito do consumidor.
De acordo com a lei, se o defeito for constatado dentro de 90 dias após a compra em bens duráveis, como é o caso de um carro, o estabelecimento comercial tem a obrigação de resolver o problemas em 30 dias. Se não houver resolução neste prazo, o consumidor tem o direito de exigir, à sua escolha, a troca do veículo por outro do mesmo padrão, o cancelamento da compra ou um desconto. No entanto, tais direitos só são garantidos quando a compra foi feita em um loja, revendedora ou concessionária. A compra entre particulares não é considerada relação de consumo. Nestes casos, o Código Civil é que deve ser usado para solucionar eventuais problemas.
Caso o veículo apresente algum defeito que não estava aparente no momento da compra nem no prazo legal de 90 dias, o consumidor pode reclamar assim que descobrir o problema.
O que diz a lei:
O artigo 18 do Código de Defesa do Consumidor afirma que os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destino ou diminuam o valor. Não sendo o valor sanado no prazo máximo de trinta dias, o consumidor pode exigir: a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso; restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos ou abatimento proporcional do preço.
Para saber mais:
Um consumidor do Rio Grande do Sul entrou com um processo contra a concessionária em 2009. Ele comprou um carro 0km e o veículo apresentou problemas no ar condicionado, marcador de combustível e o banco estava descosturado. No processo, o consumidor alegou que mandou o carro para o conserto da concessionária várias vezes e os problemas não foram resolvidos. A sentença do processo saiu em 2014, cinco anos depois do início da ação. Durante este período, o cliente usou o carro. Assim, no entendimento do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, a concessionária foi obrigada a trocar o veículo, porém, o consumidor teve que pagar à empresa o desgaste do veículo dos anos que a ação ficou tramitando na Justiça.
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