De acordo com o Código de Defesa do Consumidor (CDC), imputar multa por extravio é ilegal e abusivo
Por Renata Nagashima* e Isabela Nóbrega*
É comum encontrar em comandas de bares e restaurantes ou em bilhetes de estacionamento que a perda do documento gera cobrança de multa. O aviso costuma ser adotado pela maioria dos estabelecimentos que utilizam mecanismos para o controle do consumo do cliente, seja em produtos, seja em tempo de permanência. Antes de ser cobrado por qualquer dos serviços, é importante estar atento ao que é direito.
De acordo com o Código de Defesa do Consumidor (CDC), imputar multa por extravio é ilegal e abusivo. Porém, o especialista e advogado do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Igor Marchetti, explica que ainda não existe legislação que proíba a prática. Mas os artigos 39 e 51 do CDC são considerados suficientes para que tal cobrança não seja permitida, “visto que o estabelecimento não deve transferir ao cliente a responsabilidade pelo controle das vendas”, advertiu Marchetti.
“A cobrança dessa multa é considerada uma prática abusiva, conforme o inciso V, do artigo 39, apesar de não ser considerada crime. Contudo, se o cliente for constrangido fisicamente pelo pagamento dessa multa, poderá configurar crime contra o consumidor de acordo com o artigo 71 do CDC”, apontou o advogado.
Ele afirma que, nesses casos, deve prevalecer a boa-fé de ambas as partes. “Ao perceber a perda da comanda ou do ticket, o cliente deve solicitar ao estabelecimento um novo documento de verificação, informando o que já foi consumido”, orientou Marchetti.
Se o cliente, em algum momento, for coagido, constrangido ou tiver sua liberdade física restringida, a ação poderá ser considerada crime, conforme o artigo 71 do Código de Defesa do Consumidor. Ele pode acionar a polícia para encerrar o constrangimento sofrido e exigir reparação por danos morais na Justiça.
O técnico de sistemas, Vitor Alves, 29 anos, conta que recentemente viajou para a cidade de Recife e fechou um pacote de turismo para conhecer a região. Durante o passeio, ele o grupo de turistas pararam em um restaurante. Assim que entrou no estabelecimento, recebeu um cartão de consumo, que teria de ser devolvido, caso não consumisse nada. o transporte parou em um restaurante, e, assim que desembarcou recebeu o cartão de consumo, para ser devolvido na saída, mesmo que comprasse nada. Quando saía do local, percebeu que havia perdido a comanda. “Em letras minúsculas, informavam que, se houvesse a perda, a taxa cobrada era de R$ 80 ”, relatou.
O rapaz aponta que tentou dialogar com os responsáveis pelo local, mas foram imparciais e só o liberariam após o pagamento da multa. Do lado de fora, os companheiros de viagem e o motorista da van que conduziu o grupo também pressionavam o técnico de sistemas a pagar o valor exigido pelo restaurante, conta o rapaz. “Eu só tinha R$ 40 no bolso e teria que passar o resto no cartão, mas todo mundo estava com pressa, então o proprietário do estabelecimento aceitou os R$ 40 como se fosse caridade”, recordou Vítor, se sentiu constrangido com a situação. “Eu tinha ouvido falar dessa proibição, porém, não havia passado por uma situação dessa, ainda mais em viagem, onde a gente não quer passar por dor de cabeça e se estressar. Por isso, preferi pagar e evitar confusão”, disse o brasiliense.
Igor Marchetti explica que, se o cliente é impedido de sair, o estabelecimento estará, na prática, realizando cárcere privado, o que constitui crime, de acordo com o artigo 148 do Código Penal. “O consumidor pode, então, chamar a polícia para que ponham fim ao cerceamento de liberdade”, pontuou.
Com um estudante, que preferiu não se identificar, não foi diferente. Ele e os amigos perderam a comanda e foram surpreendidos com o valor exorbitante que deveriam pagar. “Estávamos colocando tudo que pedíamos no mesmo tíquete para facilitar na hora de dividir a conta, fizemos o cálculo e daria cerca de R$ 200, mas tivemos que pagar R$500 para sair de lá sem problemas”, relatou o rapaz. Ele disse que se sentiu impotente diante da situação. “Eu não sabia que não era obrigado a pagar sem que eles comprovassem a despesa. Como não tinha informação, não pude me posicionar e evitar a cobrança injusta”, avaliou.
Em uma situação como a do estudante, o consumidor pode exigir provas do valor gasto. A empresa deve ter o controle interno para mostrar ao cliente o que foi gasto. Nesses casos, como a prova está com o estabelecimento, pode ser aplicada a inversão do ônus da prova, conforme artigo 6º do Código de Defesa do Consumidor.
O motorista Antônio Carlos de Sousa Almeida, 54, teve o tíquete do estacionamento furtado junto com a carteira. Quando retornou ao local onde havia deixado o carro, tentou explicar a situação ao responsável, que, além de cobrar pelo tempo de permanência, cobrou também pela perda do bilhete. “Ele tinha registrado a hora que cheguei, então poderiam apenas calcular o tempo que fiquei lá. Mas queriam que eu pagasse o triplo do valor para ser liberado”, contou. Sem dinheiro, o Antônio Carlos ligou para um colega de trabalho, que o socorreu.
No dia seguinte, ele voltou ao local para conversar com o dono e receber o valor pago. “Conheço os meus direitos, então mostrei o Código de Defesa do Consumidor para ele, que concordou comigo e se desculpou. Acabou devolvendo todo o dinheiro, inclusive o valor do tempo que fiquei no estacionamento, como cortesia”, relatou o motorista. Ele ressaltou que é importante estar informado sobre os direitos do consumidor. “Se eu não soubesse, teria ficado no prejuízo.”
O que diz o artigo
Inversão do ônus é a prova de uma situação alegada e que deve ser apresentada por quem está sendo processado. No caso, o estabelecimento deve provar o que o cliente consumiu.
*Estagiárias sob a supervisão de Margareth Lourenço (Especial para o Correio)