CRIANÇAS BRINCANDO

AS CRIANÇAS, AS FRUSTRAÇÕES E O SUICÍDIO

Publicado em Psicologia infantil

Que atire a primeira pedra quem nunca recebeu ou não foi tocado por um daqueles vídeos com crianças das décadas de 50, 60 e 70 brincando na rua, correndo feito loucas, cheias de hematomas, esfoladas de dar dó, suadas e sujas de dar nojo, mas, como diria minha mãe, “rindo a bandeiras despregadas”. E muitos de nós vivemos essa infância, mas a sensação que temos é a de que, entre aquele tempo e hoje há a eternidade. Havia disputas acirradas? Sem dúvida. Havia brigas? Muitas. Havia bullying? Todo o tempo.

 

Mas não víamos casos de suicídio entre crianças e adolescentes como vemos hoje. E não estou falando das que têm vidas desoladoras, mas das chamadas “crianças que têm tudo”. É claro que vivíamos situações estressantes, mesmo porque os pais eram rigorosos demais e até violentos, não nos ouviam porque achavam que criança não tinha que falar, mas obedecer. Muitas de nós sofríamos de depressão e ansiedade, como vemos hoje, mas acredito que essa atividade física ao ar livre, a exposição ao sol, o contato presencial com outras crianças, ajudava-nos a esquecer, pelo menos por alguns momentos, as agruras da vida.

 

Sim, as agruras da vida! Porque está redondamente enganado aquele que pensa que criança que tem “tudo nas mãos”, que “não precisa se preocupar com mais nada além de brincar e estudar”, não tem motivo para se sentir infeliz. As estatísticas estão aí para provar que isso não é verdade e várias são as causas para ideações e tentativas de suicídio – problemas mentais, como depressão e transtorno de personalidade borderline; perda de um ente querido, por morte ou separação; bullying; abusos sexuais; dificuldades de aprendizagem. E alguns sinais não podem ser ignorados, servindo de alerta, como alterações do apetite e do peso, cansaço excessivo, baixa autoestima, agitação, desânimo, isolamento, irritabilidade, ataques de raiva, comportamentos estranhos como roupas que mais parecem esconderijos.

 

Mas uma coisa chama a minha atenção nas crianças e adolescentes de hoje, que é o despreparo para lidar com as frustrações, com as decepções. Aquelas crianças de antigamente, às quais só restava obedecer, já tinham um “não” pra tudo e tinham que correr atrás do “sim” pra qualquer coisa que não fosse acordar, dormir, comer, tomar banho, ir pra escola, fazer as lições. Toda e qualquer coisa que saísse desse script demandava permissão que precisava ser perseguida. Em geral, pedia-se à mãe, que empurrava a responsabilidade para o pai, que a devolvia com um “Se sua mãe disser que pode, tudo bem pra mim”. E lá ia a criaturinha de volta para a mãe, com o coração aos pulos.

 

Hoje, a garotada já nasce com um “sim” pra tudo. Os pais, desejosos de serem “os melhores pais do mundo” e, cá entre nós, morrendo de medo de não o serem ou de assim não serem considerados, raramente dizem “não” às suas crias e, quando o fazem, diante do espanto e do choque provocado, entram em pânico e voltam atrás nas suas decisões, restabelecendo a calma nas relações. Só que a vida não é feita só de “sins”, mas também de “nãos”. Aliás, bem mais “nãos” do que “sins”. E quando o filhote começa a dar os primeiros passos fora da bolha de proteção, o bicho pega, não alisa!

 

Um exemplo de ambiente que não passa a mão na cabeça de ninguém é o das redes sociais. Mesmo para muitos adultos, é difícil lidar com críticas, até mesmo construtivas. Agora imagine o que é para uma criança ou um adolescente acostumado aos “sins”, receber “nãos” ou, o que é pior, ser alvo dos haters, que disseminam o ódio, fazendo comentários maldosos e até absurdos, criminosos. Muitas crianças e adolescentes tiram a própria vida por não suportarem o que lhes é dito pela internet. E a solução não é impedir o uso das redes sociais, porque elas são uma realidade, são parte da nossa vida.

 

Assim, deixo aqui alguns conselhos aos pais que desejam ser os melhores do mundo. Em primeiro lugar, entenda que, em situações ordinárias, todos os pais e todas as mães tentam ser os melhores pais e as melhores mães do mundo, mas todos, sem exceção, falham porque os consumidores desses esforços, que são os filhos, costumam ter uma noção diferente do pai ou da mãe ideal. Então tente ser o pai que você gostaria de ter tido e vá se adaptando aos seus filhos, aprendendo com eles, com os novos modelos sociais, com os novos tempos. Siga firme e ponha todo o seu amor nesse percurso.

 

Em segundo lugar, pense que seus pais provavelmente também desejaram ser os melhores do mundo ou, no mínimo, não cometer os erros cometidos pelos pais deles. Assim, mesmo que você ache que eles não se saíram bem, não cometa o erro de acreditar que eles fizeram tudo errado. Em geral, começamos pensando que eles erraram em tudo, depois começamos a pensar que eles acertaram em algumas coisas e terminamos pensando que eles acertaram muito, às vezes naquilo que abominávamos.

 

Em terceiro lugar, seu filho precisa mesmo é ser amado – acolhido, respeitado, ouvido, orientado. Ele precisará ouvir “sins” e “nãos”; precisará ouvir que a vida nem sempre é como a gente quer que ela seja, exigindo de nós resiliência, paciência, perseverança; precisará ouvir de você um pedido de desculpas sempre que você entender que falhou com ele; precisará entender que pais não são super-heróis, apenas seres humanos tentando acertar, que continuam a nos amar mesmo quando erram feio, mesmo quando nós erramos feio.

 

E procure se conhecer, observar como você costuma lidar com os “nãos” da vida, como reage diante das frustrações. Você se mantém tranquilo, respira fundo e tenta encontrar uma saída para o problema? Ou você é do tipo que tem um ataque, desconta nos outros, enche a cara ou toma um calmante e fica largado na cama babando? Lembre que os nossos filhos estão sempre de olho em nós, aprendendo com o que falamos, mas, principalmente, com o exemplo que damos. Como dizem, a palavra convence, mas o exemplo arrasta.

 

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22 thoughts on “AS CRIANÇAS, AS FRUSTRAÇÕES E O SUICÍDIO

  1. PE via WhatsApp: Show!! O texto retrata muito bem a relação do país do passado e os pais do presente!! Que os leitores possam refletir sobre a relação dos pais nos dias de hoje, com seus filhos. Está excelente!! O texto está muito bom e apropriado para os dias de hoje.

  2. Mário César via WhatsApp: Texto muito bom. Tenho pensado muito nisso tudo, mas com uma atenção especial para a chamada ansiedade. Descobri ser um dispositivo necessário para a sobrevivência. É acionado para elevar nossa atenção pela nossa sobrevivência. Você está na floresta e ouve um barulho de graveto quebrando no chão. A ansiedade aguça seus sentidos. Atualmente, a falta de perigos físicos reais e naturais cria espaço para perigos abstratos. Medo de não ser aceito não é o mesmo que se tem quando se ouve o rugido de uma onça, mas o mecanismo da ansiedade é o que temos desenvolvido para lidar com isso. Obviamente inadequado. Quando não tínhamos opções para escolher ou não nos cabia escolher, não havia tanta ansiedade. A decisão estava feita. Hoje, livres para escolher entre inúmeras opções (reais e imaginárias), temos de lidar com o medo de decidirmos mal e, consequentemente, dos desdobramentos dessa decisão. E para lidar com esse medo, a ansiedade é acionada. Ou, como disse Kierkegaard: a ansiedade é “a vertigem da liberdade”. Vivemos um contexto inédito na experiência da nossa espécie e não temos as ferramentas para lidar com suas dinâmicas. De uma maneira geral, o passado não era melhor que o presente. “Apenas” o presente chegou antes de estarmos preparados para ele. Livramo-nos de mitos religiosos e criamos outros, segundo nossa imagem e semelhança.

    1. Mário César seu texto também me trouxes reflexões, acho que a mais inquietante delas é a que percebi que muitas vezes nomeamos nossa vaidade, nosso ego, digo até a nossa arrogância como maneira de chamar a atenção do outro, mas muitas vezes, o outro está imerso em si e em suas demandas também que chega a ignorar, esse nosso comportamento, eu me vejo ansiosa, mas não me encontro em perigo, tenho um teto a que me abrigar, tenho uma família que pude colecionar momentos agradáveis para revisitar, tenho acesso à arte, esporte, saúde, lazer gratuitos, mas o que me falta? Por vezes, penso que está é sobrando… e o nome do que está sobrando é ego…

  3. Nelson Monteiro via WhatsApp: Adorei o texto. Realmente, só sei que nos meus tempos de criança no Rio de Janeiro, e depois em Porto Alegre, não víamos esses tipos de tantas frustrações que nos levassem ao suicídio ou mesmo terem problemas de por algum amigo !

  4. Karine Veloso via WhatsApp: Texto maravilhoso! Obrigada por tanto. Os seus textos, ao tempo em que nos abrem os olhos, são para mim reconfortantes.👏🏼👏🏼👏🏼

  5. Ana Claudia Lopes Vidal via Instagram: Texto importantíssimo, pois professores ,pais e familiares precisam estar atentos ao brincar ,socializar e até mesmo no frustrar!!

  6. João Paulo via WhatsApp: Bom dia, Maraci. Belo texto sobre as crianças, frustrações e o suicídio. Suas palavras realçam a importância do combate à escravidão moderna, num mundo orientado à performance, estética e nada solidário. A falta de alteridade e a tentativa constante de evitar a dor (que muitas vezes é pedagógica) vem moldando indivíduos frágeis que precisam cada vez mais de referências consistentes e amorosas.

  7. Whashington via WhatsApp: Boa tarde, Maraci! Acabei de ler seu excelente texto, publicado no correio brasiliense, sobre crianças, frustração e suicídio. Meu filho mais novo tem 17 anos e para mim foi um desafio acrescentar um certo nível de frustração a vida dele. Eu sabia que ele precisava disso, para se tornar uma pessoa resiliente e adaptável. Então, a maneira que encontrei para trabalhar este aspecto na vida dele foi colocá-lo para participar de competições de Xadrez e Karatê. No começo, ele chorava muito quando perdia. Mas com tempo foi se acostumando e conseguiu amadurecer nesse aspecto. Esta foi uma maneira que encontrei ensinar ele que as derrotas são o caminho para a vitória daquele que não desiste. Washington, pai do Daniel (futuro médico).

  8. Muito bom esse texto, faz a gente refletir. Eu tive uma infância no interior, muita criança na rua brincando no final de tarde, muita natureza, vida saudável e livre de eletrônicos. Hoje tenho uma filha, moro na periferia de Brasília, casas amontoadas, sem quintal, sem árvores, pessoas presas atrás das grades com medo da violência, e me sinto mal por ela não sair muito de casa, não ter amigos para brincar na rua sem preocupações. Queria muito dar a ela as lembranças lindas q eu tenho de criança, correndo atrás das borboletas no jardim da paróquia perto de casa, brincar de pique pega, queimada, ou só ficar conversando e rindo de bobagens na calçada. O que resta para ela se divertir hj acaba sendo o cel, pq trabalho muito, saio cedo, chego tarde, e apesar de fazer o que posso, a culpa de não fazer o melhor me pesa.

  9. Esse texto me traz reflexões vindas de lados diferentes, eu como a mãe que sou hoje, a filha que fui criança/adolescente e a filha que sou hoje, e a pedagoga formada há quase 20 anos e com tempo equivalente em sala de aula, a minha infância correndo na rua, deixando de cuidar da casa para a mãe que chegava cansada do serviço, sempre tendo que recriar novos amigos (morte x vida x morte), porque mudávamos muito de casa, de vizinhança, minha mãe com rompantes de estresse, e muita agressividade, eu contestadora e crítica sobre tudo, sempre levando surras homéricas, me formei e aprendi que a criança é um Universo a ser desvendado e que tem sede de conhecer tudo o que existe, aprendi a apresentar o mundo à elas através das brincadeiras e jogos teatrais, contos, lendas, fábulas e histórias, mas ainda havia o olhar disciplinador/formador, eu me divertia com as indagações levantadas por eles, ia à busca das respostas e todos aprendíamos juntos, e logo eles esqueciam àquele tema, já que há muito a se descobrir, depois e também durante esse percurso me tornei mãe, de uma filha linda, calma, serena e super curiosa, a levei onde eu podia para apresentar à ela, tanto culturas quando as artes produzidas pelas diferentes culturas, também tentei levar ela para brincar na rua, tentei trazer amiguinhas para que ela brincasse em casa, mas esse não era o perfil dela, aparentemente ela sempre teve preguiça de interagir com as pessoas, e ainda houve um rompimento trágico em nossas vidas com a depressão seguida de suicídio do pai dela, então a decisão dela por ficar quietinha e estudar, está sendo acolhida (por enquanto), porque quero vê-la com “o dedo em V, cabelo ao vento…” brincando e reivindicando nas ruas por qualidade de vida para si e para todos. Temo que ela olhe os estudos apenas sob o recorte da profissionalização, estudamos para enxergar o mundo sob diferentes pontos de vista. E a escola ainda é a grande academia de conhecimentos, além de toda a sociedade estar representada nela.

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