Cosette Castro
Brasília – Se tornar cuidadora familiar da noite para o dia, não é uma tarefa fácil. Não vem com manual de instruções nem preparo emocional.
Parece que todas informações sobre síndromes que nunca tínhamos ouvido falar, como é o caso das demências, vão caindo pelo teto, entrando pelos poros e pelos ouvidos. Mesmo que, interiormente, mantenhamos acesa a esperança de que tudo seja “apenas” um erro de diagnóstico. Ou que seja “parte do envelhecimento”. Não é.
O envelhecimento natural é bem diferente dos sintomas das demências, entre os seus mais de 100 tipos, onde o Alzheimer é o mais conhecido e o que mais atinge as mulheres. As demências são multifatoriais, ou seja, têm várias causas e, pelo menos 14 delas, dizem os especialistas, poderiam ser evitadas.
Entre os fatores evitáveis estão o sedentarismo, o fumo, o álcool em excesso, a obesidade, a deficiência auditiva, a perda da visão, a diabetes, a hispertensão, o colesterol alta, os ferimentos na cabeça, a depressão, a falta de contato social, o baixo nível de escolaridade e a poluição do ar.
Uma das hipóteses possíveis para mulheres apresentarem mais casos de Alzheimer em países com desigualdade social como o Brasil, é a vida de sobrecarga física e mental que elas enfrentam desde cedo. Particularmente se forem mulheres negras ou pardas que vivem com fragilidade social nas periferias do país.
Essa sobrecarga se manifesta todos os dias do ano no trabalho não remunerado de cuidado doméstico. Lavar, passar, arrumar casa e fazer compras na padaria, mercearia, supermercado, na farmácia, fazer comida, organizar jantar, aniversários, preparar marmita, cuidar de pátio, jardim, administrar cuidadoras profissionais, quando o orçamento permite, etc).
Ela (a sobrecarga) se manifesta também no cuidado de pessoas e pode se estender por toda a vida. Entre essas pessoas estão filhas e filhos, enteada/o (s), netas/os, pais, avós, sogra e sogro, marido, pessoas com deficiência, pessoas com doenças temporárias ou enfermidades que tiram a autonomia e não têm cura. Como as demências.
A falta de perspectiva, o estresse que passa a ser cotidiano, a preocupação com o orçamento, as entradas e saídas do hospital. Tudo contribui para as noites de insônia, para a mudança dos hábitos alimentares, para deixar de lado o autocuidado, para o sofrimento mental. E para um crescente sentimento de solidão.
Até pouco tempo nem a sociedade nem a maioria das mulheres reconheciam o cuidado gratuito que elas realizam dentro de casa como trabalho. Para muitas era mais uma obrigação que vinha envolvida com invólucro romantizado do amor.
Muitas sequer se davam conta dos motivos de se encontrarem constantemente cansadas, tristes ou irritadas. Foi preciso um longo (e pouco conhecido) trabalho das feministas do mundo inteiro para que o tema do cuidado entrasse na pauta. Primeiro dos organismos internacionais (ONU, OMS, OPAS), para que conferências fossem realizadas, protocolos assinados e que o Brasil fosse signatário desses documentos.
Desde dezembro de 2024 temos uma Política Nacional de Cuidados que coloca os cuidados no seu devido lugar: na centralidade da vida social, tirando o cuidado doméstico e do cuidado familiar da invisibilidade e discutindo a precariedade do cuidado profissional. Não é uma tarefa fácil, mas já começou.
As Mulheres Seguem Cuidando
Muitas mulheres, mesmo as exs esposas ou ex-companheiras, seguem cuidando os antigos maridos, embora a recíproca não seja verdadeira quando são as mulheres que adoecem. E isso se repete entre mulheres com diferentes tipos de enfermidades, como o câncer ou as demências.
Estudo do Instituto Nacional de Câncer (INCA, 2024) mostra que 70% das mulheres com câncer são afastadas ou abandonadas pelos maridos. Por outro lado, 93% das pessoas que cuidam sem remuneração um familiar com demência são mulheres (Unifesp, 2025). Precisamos urgente garantir a corresponsabilidade masculina no cuidado familiar. Os homens precisam deixar de “ajudar” para passar a cuidar também de quem cuida.
PS: Este domingo, 02/11, estaremos no Parque Olhos D´ Água, localizado na quadra 413/414 da Asa Norte em Brasília para mais uma caminhada do Coletivo Filhas da Mãe. Encontro às 8h30, na entrada do Parque, logo após os banheiros.
PS2: Mais de 100 famílias pediram ajuda a justiça federal para que a Defensoria Pública possa realizar autopsia independente nos mais de 120 mortos da tragédia do Rio de Janeiro. Mais uma vez são as mulheres que pedem o direito ao reconhecimento dos seus filhos, irmãos, companheiros, netos e sobrinhos. Também foram elas que ajudaram a carregar para praça pública os mais de 70 corpos deixados para trás na contagem oficial. Elas seguem cuidando, mesmo depois da morte.

