A Solidão, a Vida e a Morte

Publicado em Envelhecimento

Cosette Castro & Marie Togashi

Brasília – A morte solitária do ex-ator de Hollywood Gene Hackman, que tinha Alzheimer, e sua esposa, a pianista Betsy Arakawa, segue repercutindo no Brasil.

Vale a pena refletir sobre o que esse acontecimento representa. Vivemos em uma sociedade  marcada pela pressa, pelo individualismo e por relações afetivas e profissionais que, cada vez mais, acontecem no mundo virtual. Inclusive as relações bancárias e com grandes empresas são intermediadas por assistentes virtuais. Isso pode gerar ansiedade e sentimento de solidão.

Para milhões de pessoas, o primeiro ato ao acordar é acessar a internet através do celular. De acordo com o Relatório Global Digital 2024, da We Are Social e Meltwater,  brasileiros e brasileiras ficam 9 horas e 13 minutos por dia nas redes sociais digitais.

Somos o segundo país do mundo no consumo de redes digitais. Isso não acontece por acaso. Em tempos de solidão, mesmo com pessoas em volta, o mundo digital oferece a falsa sensação de que não estamos sós.  Aliás, para muita gente, particularmente pessoas idosas, o WhatsApp pode representar o único contato com outras pessoas durante a semana.

Durante e depois da pandemia, os relatos sobre a solidão em vida e na hora da morte têm chegado aos jornais e a este Blog com mais frequência. Precisamos falar sobre isso, reforçar redes de apoio e criar em todo o país centros de convivência intergeracionais.

A convidada de hoje é a Professora de Farmácia da UnB, Marie Togashi, que faz parte do Coletivo Filhas da Mãe. Ela conta a solitária história do seu tio, Nobuo, no Japão.

Marie Togashi – “O caso de Gene Hackman me fez lembrar do que aconteceu na minha família, com meu tio, irmão mais velho do meu pai. Ele vivia no Japão e o conheci pessoalmente.

A comunicação com meus parentes japoneses para mim era ausente. Meu pai escrevia sempre para eles e somente uma das tias respondia. Até que ela faleceu. Meu pai continuava escrevendo para os irmãos, mas não tinha resposta.

Um dia recebemos uma ligação internacional de um agente do governo japonês. Imagina! Ligação do Japão!… Meu pai era o parente mais próximo que eles tinham o contato. Eu não entendia como isso podia acontecer se o filho, a esposa, a irmã caçula e os sobrinhos moravam lá. E o filho e a esposa moravam na mesma cidade, Tóquio.

O governo japonês informou ao meu pai que o seu irmão havia falecido sozinho no apartamento. Foi encontrado morto depois de uma ou duas semanas e não sei quem avisou a polícia. Coube ao meu pai, daqui do Brasil, avisar à irmã caçula e ao sobrinho, filho desse tio.

Foi assim que meu pai soube que a esposa de seu irmão estava com demência e que estava morando em uma Instituição de Longa Permanência para Pessoas Idosas (ILPI). O filho nem falava com o pai (meu tio). O relacionamento entre eles sempre foi difícil. Mas e os outros parentes?

Meu tio lutou na segunda guerra mundial. No final da guerra foi dado como morto. Depois de muitos anos, quando só existia na memória dos parentes, ele reapareceu e contou que ficou na Sibéria como prisioneiro de guerra. Depois de liberto, viveu na China por mais anos. Quando retornou, já não era mais querido pela esposa e filho, pois a vida não pára. Mas foi aceito em casa.

Nem consigo imaginar seus últimos dias e o último momento. Meu tio era muito lúcido e solitário. Suas experiências fizeram com que ele pensasse e visse o Japão e as pessoas de forma diferente. Fala-se muito do respeito às pessoas  idosas na cultura japonesa. Eu mesma não vi esse respeito nas ruas quando vivi lá.

Vi jovens reclamando das pessoas idosas por andarem devagar, por demorarem para comprar passagens nas máquinas automatizadas do metrô, o que fazia com que as filas crescessem. Para aqueles jovens, as pessoas idosas eram estorvos. Perto de deixar o país, vi os esforços da televisão japonesa para reduzir o preconceito.

Havia campanhas para que os jovens se colocassem no lugar das pessoas mais velhas e os tratassem com mais consideração. O preconceito pela idade, conhecido como etarismo ou ageismo, existe. Atualmente, com o envelhecimento populacional, no Japão cresceu o enfoque no envelhecer e na importância de estimular o relacionamento intergeracional.

No Brasil também ocorre o aumento da população idosa e estamos caminhando para melhorar as relações, a tolerância e a empatia entre as diferentes gerações.

Considero o envelhecer muito solitário, ainda mais quando nos tornamos cuidadoras familiares de nossos pais ou outros parentes mais velhos. É preciso fazer um esforço diário muito grande para fazer parte de uma rede, de um grupo social. Principalmente para não sermos esquecidas.”

No Coletivo Filhas da Mãe acolhemos pessoas que cuidam familiares e realizamos projetos para estimular o encontro e novas amizades, levando em conta o processo solitário, invisível e desgastante do cuidado.

 

 

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