Cosette Castro
Brasília – Há alguns dias li um texto que comenta sobre a morte do ator Gene Hackman e sua esposa, Betsy, nos Estados Unidos. E na coordenação do Coletivo Filhas da Mãe refletimos sobre o que ocorreu.
Abaixo seguem algumas ponderações sobre o texto (leia aqui). Gene Hackman tinha o tipo mais frequente de demência, o Alzheimer, e foi encontrado morto em casa junto com a esposa e um dos seus três cachorros. (Sugiro ler o texto original antes da reflexão abaixo).
Em primeiro lugar, é preciso levar em consideração que a cultura estadonidense é diferente da cultura brasileira. Vivemos mais em torno e na dependência da família. Ou seja, de mulheres que cuidam.
Nos EUA, muita gente prefere morar sozinha. Ou só o casal. Não querem empregada, cuidadoras, ninguém de fora. Tem gente que cuida sozinha ou a dois de chácaras e até de pequenas fazendas. É difícil para nós compreendermos isso.
O isolamento foi uma decisão de um casal com muito dinheiro. Que podia pagar cuidadoras, enfermeiros ou home care. Entretanto, eles não quiseram mais gente, embora tivessem um médico particular e um plano de saúde privado nível A. Tampouco decidiram viver em uma Instituição de Longa Permanência para Pessoas Idosas (ILPI), o que algumas pessoas poderiam considerar aconselhável.
Gene Hackman teve 03 filhos de um casamento anterior. Frutos de um casamento da juventude, os filhos são pessoas idosas ou em processo de envelhecimento: Cristopher, 65, Elisabeth, 62, e Leslie, 58 anos. Cada um tinha a sua própria vida e família para cuidar.
Com poucos vínculos afetivos e convivência, fica difícil esperar atenção constante. Além disso, lá não existe, como no Brasil, a expectativa de que os filhos tenham de cuidar os pais até o final. Diferente do Brasil, nos EUA não há obrigatoriedade por lei do cuidado paterno ou familiar. Cada família cuida de si.
O ex-ator e a esposa decidiram viver sós. Pra eles. Sem outra interferência. E isso pode ter funcionado por um tempo. Mas Betsy não contou com a sua própria fragilidade.
Esse desejo de isolamento, independência e autonomia faz parte do modo de viver estadonidense. E de uma sociedade onde viver dependente da família depois de adultos não é algo corriqueiro. Muito menos entre pessoas com fama e dinheiro.
No Brasil, a vida comunitária está presente na periferia. No entanto, é mais difícil na classe média e média alta onde os vizinhos de apartamento ou de casas mal se conhecem ou relacionam. Já nos EUA existe senso comunitário entre vizinhos de classe média da mesma quadra ou bairro, apesar das lógicas individualistas e competitivas em que vivem.
Lá é considerada classe média uma família que ganha entre dois terços e o dobro da renda média do estado onde vive. Aqui é considerada de classe média famílias que recebem entre 3,4 e 25 mil reais (B/C). Segundo estudo da Tendências Consultoria (2025), 50,1% da população faz parte das classes A, B ou C (Saiba mais).
Gene Hackmann fez uma escolha ao não querer mais ser visto depois de tantos anos de exposição pública. Essa escolha pode ter sido equivocada pela gravidade e o desenrolar da demência, síndrome neurodegenerativa progressiva e sem cura sobre a qual pouca gente conhece.
A decisão de isolamento do casal pode ter sido considerada extrema em relação aos parâmetros brasileiros, porém ajuda a refletir sobre a importância dos vínculos afetivos, da sociabilidade e das redes de apoio em qualquer classe social, cultura ou idade.
Também ajuda a lembrar que na sociedade estadunidense não existe o mesmo peso social do cuidado familiar relacionado às mulheres. A vida em uma ILPI é muito mais aceita lá do que no Brasil onde a responsabilidade do cuidado familiar recai sobre as mulheres (mães, irmãs, filhas, tias, avós e até bisavós). Essa foi a decisão de um casal rico em um país onde os direitos individuais estão na base social.
Por outro lado, em nenhum momento o texto chama a atenção para um possível adoecimento mental da esposa, 30 anos mais nova. Ela ficou sozinha cuidando, com o peso da sobrecarga física e emocional diária. O texto, pelo seu silêncio, ressalta que a invisibilidade do cuidado familiar extrapola fronteiras e países.
Tampouco houve comentários sobre a quantidade de mulheres cuidadoras em diferentes países, inclusive no Brasil, que sucumbem antes do familiar doente. Independente da doença.
Quanto ao Brasil, embora tenhamos um Estatuto da Pessoa Idosa referência para outros países, depois de 20 anos ainda não foi totalmente implementado. É urgente que a Secretaria Nacional da Pessoa Idosa tenha orçamento para implementar os Conselhos nos mais de 5 mil municípios do país. E que acolha a diversidade da população 60+ e suas demandas, como espalhar Centros Dias públicos pelo país.
Também precisamos de campanhas permanentes contra o preconceito e a violência sobre as pessoas idosas em um país que se considera jovem. Apesar de termos 35 milhões de pessoas com 60 anos ou mais e outros 55 milhões na faixa dos 50 anos ( BGE, 2024).
Ainda temos muito para conversar, refletir e agir sobre as diferentes velhices e a desigualdade no envelhecimento no Brasil.
PS: Nesta terça, 18/03, tem Programa de Entrevistas TERCEIRAS INTENÇÕES online, das 19 às 20h, com a antropóloga Carmela Zigoni que vai falar sobre Direitos da Mulher e Políticas de Cuidado. Apresentação da jornalista Mônica Carvalho no canal do YouTube FILHAS DA MÃE COLETIVO.