Descobertas Cognitivas de uma Cuidadora Familiar

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Cosette Castro & Natalia Duarte

Brasília – Neste domingo, 21/04, Brasília irá comemorar 64 anos. Embora jovem para uma cidade, já sente o peso do envelhecimento de sua população.

Em meio às comemorações, abrimos o Blog para Natália Duarte, professora da UnB e uma das Coordenadoras do Coletivo Filhas da Mãe. Ela conta algumas aprendizagens e desafios como cuidadora familiar.

Natalia Duarte – “Quando se trata da demência do pai ou da mãe, pessoas fundantes de quem somos, lidar com a contradição entre a realidade atual da pessoa e a referência de inteligência e bom senso da memória da criança que fomos é dramático.

Meu pai é a pessoa mais inteligente e articulada da minha memória. Não só da minha, mas da memória familiar. Menino pobre e abrigado desde os 11 anos, cedo se interessou pelos estudos. Foi influenciado pela mãe, Ermelinda, e por seu amigo de internato, José dos Santos.

Ítalo admirava conversar com seu amigo porque ele sabia de atualidades, de Geografia, História e Economia. Um dia perguntou:  – Zé, como é que você sabe de tantas coisas?

– É que eu gosto de ler. Leio tudo que acho interessante e disponível.

José dos Santos trabalhava na oficina de reciclagem de papéis do internato. Sempre que aparecia jornal, revista ou livro pedia ao mestre para guardar. Depois devorava nas noites silenciosas.

Vendo o interesse do meu pai, Zé dos Santos passou a compartilhar os materiais de leituras. Ítalo também se tornou um leitor apaixonado. Somente aos 88 anos ele deixou de ler jornal e noticiário diariamente.

Quando meu pai começou a ter dificuldades em ler as palavras e os números meu irmão e eu quase entramos em desespero. Logo ele, economista pós-graduado na França.

Um dia perguntava o que estava escrito, outro dia mostrava o celular e dizia não conseguir saber que horas estava mostrando… Nosso pai, nosso ídolo, estava desaprendendo a ler e a contar.

Não é fácil. Fala-se muito pouco da carga adicional de cuidar de um familiar com demência. Não há melhora. Ao contrário, o Alzheimer faz com que a pessoa doente desaprenda, de forma confusa aquilo que antes era tão elementar.

Sou cuidadora familiar dos pais fazem “apenas” seis anos, mas fui cuidadora de dois filhos, sem me dar conta do trabalho de cuidado por duas décadas.

Também sou professora de sala de aula há 40 anos, sendo especialista em alfabetização. Junto com mais duas amigas da rede pública do Distrito Federal (DF), Martha Scárdua e Relcy Caribé, desenvolvemos “O Pulo do Gato” um kit com 40 jogos para alfabetização e letramento recomendado pelo Guia de Tecnologias Educacionais do MEC (link aqui).

Utilizando essa experiência comecei a jogar com meu pai os jogos pedagógicos de alfabetização. Retomei com ele cada letra do alfabeto, jogos da memória com figura/palavra, jogos de completar as palavras, pontuar e escrever.  Também pedia para as cuidadoras jogarem com ele em complemento ao Dominó, jogo que Ítalo brinca, religiosamente, todos os dias.

É importante ressaltar, como disse Cosette no último Blog que, por mais forte que seja nosso desejo, não há milagres.

Não há reversão do cérebro danificado. Não é que meu pai tenha desaprendido e depois reaprendeu a ler letras e números. O que havia era inconstância de performance. Ou seja, hora sabe, hora não sabe. Isso é desesperador pra quem cuida.

Meu pai não reaprendeu a ler.  Mas o exercício com as letras, sílabas e palavras, está mantendo recursos de memória que têm ancorado o pouco de cognição que ainda não foi destruído pelo Alzheimer. Meu pai segue lendo pouco e lidando pouco com números. Quando ele consegue, nós dois ficamos felizes.

Só me permito dar opinião sobre aprendizagens e cognição em pessoas idosas com demência porque ocupo esse lugar de fala. Sou uma pesquisadora da área e cuidadora familiar que, de repente, descobriu novas reflexões críticas sobre cognição, aprendizagens, esquemas de pensamento, zona de desenvolvimento proximal e memória.

Tenho dito aos estudantes nas salas de aula da UnB e nas Escolas que o melhor campo para a produção de avanços no conhecimento científico é a realidade de quem faz em estreita articulação com a ciência.

É da práxis que nasce o saber libertário e efetivo. Aquele que permite enfrentar as adversidades e comemorar as pequenas conquistas diárias que transformam a realidade. Eles dão sentido e felicidade ao cotidiano.

Para quem tem pessoas idosas na família, sugiro observá-las cuidadosamente. Pode ser que a irritação e confusão não seja escolha ou mau humor. Mas os primeiros sinais de alerta para a necessidade de cuidados.

Há seis anos, se eu tivesse mais informações por meio de grupos como o Coletivo, a  vida seria diferente. Também ajudam programas televisivos como o Globo Repórter, o Profissão Repórter e Caminhos da Reportagem, da TV Brasil. E Informações nas redes digitais, escolas e universidades.

Eu não teria adoecido e estaríamos mais perto de uma Sociedade do Cuidado.

A situação não passaria a ser fácil. No entanto, compartilhar aprendizagens, saberes e soluções para o dia a dia  ajuda a enfrentar o tema da provisão de cuidados.

Sobre o aniversário de Brasília, nossa cidade precisa refletir coletivamente e se preparar para o envelhecimento da população.  Ainda não temos políticas públicas e essa ausência é suprida por mulheres invisíveis e adoentadas. Elas, na maioria das vezes, renunciam a suas vidas para cuidar.

Da parte do Governo do DF, sugerimos um bom presente para a Capital Federal: que a agenda do Cuidado se torne uma prioridade!”

PS: Hoje é o dia dos Povos Indígenas. Saudamos e reverenciamos os nossos povos originários.

Cosette Castro

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