Ana Castro & Cosette Castro
Brasília – O texto de hoje é um relato pessoal da Cosette sobre sua relação de filha única com a mãe, Carmencita, que teve Alzheimer. Temos a certeza de que nem tudo são perdas, apesar das demências. Mesmo que as relações humanas não sejam fáceis.
Cosette Castro – “Há três anos não comemoro o dia das mães como filha. Apesar de acolher a passagem da minha mãe como um descanso necessário pra nós duas, sinto a falta dela.
Não da Carmencita que conviveu quase 10 anos (após o diagnóstico) com Alzheimer. Mas da Mãe que telefonava com frequência pra dar oi e contar coisas do dia a dia, independente em que lugar do mundo em que eu estivesse.
Fui filha única de pais adolescentes. A filha mais velha, a do meio e a caçula. Muita gente pensa que é ótimo ser filha única. É verdade que temos mais atenção, mas também há muito mais cobranças. Tudo vem em dobro, sem divisões entre irmãos.
Minha mãe, como toda pessoa humana, era cheia de contradições. Mas foi a única mãe que conheci e amei. Ela cresceu em uma família onde o amor não era demonstrado. Ela mesma só conseguia abraçar e demonstrar carinho por crianças. Quase nada sobrava para adolescentes e adultos. No máximo, um beijo no rosto.
Depois dos 10 anos as crianças da família, eu incluida, perdíamos o direito a abraços, colo, demonstrações de afeto. Já “tínhamos crescido”.
A forma de minha mãe mostrar afeto era dando presentes. Telefonando. Ou limpando tudo que via pela frente. Minha mãe tinha Transtorno Obssessivo Compulsivo (TOC).
Na infância, andar com panos nos pés para deixar o chão brilhando era uma brincadeira divertida. E eu chamava as amigas pra brincar. Mesmo criança sabia que era uma forma de deixar minha mãe contente.
Os melhores presentes pra ela? Deixar tudo no lugar, tudo limpo e, claro, não fazer barulho. Minha mãe era perfeccionista. Não era fácil agradar Carmencita. Nunca foi.
Por outro lado, foi ela quem me levou pela primeira vez na universidade aos 5 anos. Ela ficou sem ninguém pra me cuidar e teve de me levar na aula com ela. Foi maravilhoso!
Foi com minha mãe que participei da primeira manifestação contra a censura em plena ditadura civil-militar. Ela e suas colegas do Serviço Social calçaram tamancos de madeira e andaram para cima e para baixo nas escadarias da universidade. Foi a manifestação silenciosa mais barulhenta que eu já participei.
Também foi com minha mãe que aprendi o significado das palavras rede de apoio e amizade entre mulheres.
Suas amigas ajudavam, cada uma a sua maneira, a me cuidar um pouco. E dessa turma da universidade, cuja amizade seguiu por toda vida, pelo menos três estiveram presentes 50 anos depois. Também na doença.
Depois que minha mãe não reconhecia mais, duas delas cuidaram de mim a distância, como uma forma de homenagear a amiga. Semanalmente, eu enviava pra família e pras amigas dela notícias, fotos e pequenos vídeos.
Apesar da rigidez, minha mãe ensinou valores importantes como solidariedade, empatia, lealdade e companheirismo.
Ela ainda incentivou o hábito da leitura. Mesmo que fosse pra eu ficar quieta. Deu certo. Me esquecia do mundo real a cada descoberta de novas historias e mundos imaginários. Além disso, minha família era uma família de mulheres contadoras de histórias. E eu sempre adorei escutar.
Minha mãe aparentava ser uma mulher forte. Para mim, até a morte do meu pai, era a mulher mais forte do mundo.
Depois de quase 40 anos de casados, minha mãe desabou. Nunca mais foi a mesma. Apesar de ter conseguido sair de uma depressão profunda, que a levou pra cama por meses. Foi assim que descobri o quanto ela amava meu pai. E o tamanho do seu desespero.
Foi difícil separar a peculiar e autoritária personalidade da Carmencita dos primeiros sinais de Alzheimer. Também foi preciso estratégia para convencer a família, irmãos dela, primos e primas.
Os esquecimentos e a distração eram “comuns”. Os atrasos, também uma constante, aumentaram, assim como a teimosia, a irritação, as brigas, as perdas cognitivas, a perda auditiva e a negação em usar aparelho. Até chegar aos desaparecimentos durante viagens e passeios e a negação de usar o celular, desligado na bolsa.
Entre as estratégias de convencimento familiar estava mostrar os exames do neurologista e levar os familiares mais próximos à consulta com o neuropsicólogo. Todos responderam questionários sobre as mudanças da Carmencita e receberem informações coletivas sobre demências.
Em uma casa onde a cafeteira passava todo dia ligada, o café seguiu como parte da recepção às visitas, agora descafeínado. A cerveja estava disponível na geladeira, sem rótulo e com zero álcool.
A vida seguiu com cuidadoras e cuidadores que eram apresentados como professora de espanhol, personal treiner ou empregada. Assim foi possível que permanecesse durante alguns anos na sua casa.
Depois de vir morar em Brasília comigo, outros cuidados foram necessários. Entre eles disfarçar os remédios entre a comida ou bebida para não serem jogados fora.
As festas, como dia das mães ou Natal, ficaram mais restritas. Sem muitos ruidos, músicas altas, gritos ou risadas altas que incomodam pacientes com demências. A ida a restaurantes foram restringidas pela demora no atendimento. Até a pandemia, seguiram os passeios diários na rua e em parques.
Contraditoriamente, foi durante a doença que lhe tirou a memória, a independência e a identidade, que minha mãe disse que me amava… Nem tudo foram perdas”.