O Mar das Memórias Perdidas

Publicado em Alzheimer

Ana Castro & Cosette Castro

Brasília – “Escrevo para que minha memória resista”. Assim começa o filme “A Suspeita” (2021), que tem Glória Pires como protagonista. ( aviso de spoiler)

O filme, dirigido por Pedro Peregrino, é um suspense de diferentes níveis, individual e coletivo. Privado e público.

Na obra, a vida pessoal da comissária da inteligência da Polícia Civil, Lúcia, se entrecruza todo o tempo com a investigação que coordena.

No decorrer do relato, faltam família, filhos, namorado, marido, amante ou ficante. Faltam amigas, amigos e rede de apoio.

Há uma solidão acachapante. A vida de Lúcia, que optou pelo emprego e excluiu a possibilidade de construir uma família, só tem sentido no trabalho.

Não há jovens nem velhos na vida da comissária. Apenas um tio,  padre, tão solitário e abnegado à profissão quanto à  sobrinha. E mesmo a relação de tio e sobrinha está entremeada do trabalho policial.

Aos 45 min de filme conhecemos o diagnóstico da doença e o aviso de que Lúcia precisa mudar a vida. Não poderá mais ser policial. Nem deter o avanço da doença

O filme é rodeado de apagamentos. Literais, como costuma ocorrer em filmes que envolvem policiais, e apagamentos da memória, uma vez que a comissária tem Doença de Alzheimer ( DA).

Há também congelamentos onde a personagem paralisa, sai do ar.

São pequenos e grandes congelamentos. Sozinha ou na frente de outras pessoas. Em geral, em situações cotidianas e reuniões, pois o trabalho toma praticamente todo o dia e a vida da comissária.

O primeiro congelamento ocorre ao montar uma escuta na casa de uma pessoa suspeita. E vão se sucedendo em um crescente.

Depois ela fica parada na sinaleira. Só se dá conta que o tempo passou quando os carros não param de buzinar.

Lúcia congela no corredor do edifício da polícia. Ela paralisa entre vários corredores, caminhos sem fim, como labirintos.

Em outra ocasião, erra de apartamento, tentando abrir a porta de uma vizinha que mora em outro andar. Inteligente, a comissária consegue disfarçar os equívocos. Só não consegue enganar a si mesma.

O suspense da investigação gera dúvida se comissária vai conseguir chegar ao final do caso. Principalmente quando um congelamento ocorre no consultório médico.

A escuridão de muitas cenas, as penumbras apontam para os pontos sem luz, perdidos na memória da policial que começa a se fragmentar.

Os brancos começam aos poucos. Pequenas distrações que vão crescendo em paralelo aos acontecimentos da história. E que Lúcia tenta disfarçar até não se dar mais conta dos próprios esquecimentos.

Em 1 hora de filme não há um abraço, um beijo, um toque de carinho. Em um mundo de violência, crime e corrupção, Lúcia não pode confiar em ninguém. Muitas vezes, nem em si mesma.

Mas a comissária não está parada. Não se rende na investigação nem na vida particular.

Em casa, ela usa quadros de avisos na parede para lembrar dos compromissos. Usa mensagens no celular e escreve para si mesma no computador.

“Tudo que pode ser prova da minha história precisa ser salvo”, escreve a si mesma, como um objetivo a ser cumprido.

No filme a participação especial de Alexa, inteligência artificial da Amazon, aparece quase como um personagem. Substitui a família inexistente, lembrando as medicações que Lúcia precisa tomar.

A comissária arma estratégias internas para lembrar. Aluga uma sala em um depósito para guardar suas lembranças, encaixotadas. Mas o próprio depósito é quase um labirinto, fácil de se perder no mar das memórias em constante turbulência.

As perdas vão em um crescente com o passar do filme. A chaleira esquecida no fogão. A torneira aberta. A roupa que não foi torcida e fica pingando no chão. A oferta de café pra quem já está tomando café. Pinceladas do que ocorre com os pacientes na vida real.

O diretor, que em alguns momentos usa metanarrativa e elementos da psicanálise, filma Lúcia dentro de quadros e a partir do reflexo no espelho. Algo que ela não consegue ver mais. Apenas quem acompanha de fora.

E o que é o filme senão uma tentativa de reflexo da realidade narrado através da ficção? O que são as demências senão fragmentos cada vez mais desencontrados da memória de cada paciente?

A comissária tenta salvar uma pessoa no filme. Salvando o outro, Lúcia tenta/ deseja salvar a si mesma. Nem sempre é possível.

PS: O filme que chegou aos cinemas em junho e está disponível apenas em plataformas pagas, como You Tube.

PS 2: Dia 02 de setembro vai começar em Brasília a Roda de Cuidado e Autocuidado entre Mulheres Cuidadoras Familiares. Inscrições gratuitas aqui

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