Meu Pai não é um filme para assistir comendo pipoca

Publicado em Alzheimer

Ana Castro & Cosette Castro

Brasília – Este fim-de-semana  assistimos Meu Pai, filme  roteirizado e dirigido pelo francês  Florian Zeller.  A obra chegou nas plataformas digitais acompanhada  de  seis indicações ao Oscar 2021: melhor filme,  ator (Anthony Hopkins), atriz coadjuvante (Olivia Colman), roteiro adaptado, edição e design de produção.

Domingo à noite recebeu o Oscar de Melhor Ator e Melhor Roteiro adaptado.  Mas não imagine que da pra sentar na sala e comer pipoca enquanto  assiste  o filme.

Anthony Hopkins magistralmente traz a vida um engenheiro aposentado, de 81 anos,  que está na fase avançada  de Alzheimer. Ele passa seus dias entre o delírio e a realidade.

A obra, que originalmente é uma peça de tetro, tem poucos personagens  e está ambientada quase toda  dentro do apartamento. O mundo de Anthony  é visto pela janela, uma janela da memória do personagem.

O filme é lento e pode causar estranhamento porque foge da tradicional linearidade das histórias, com começo, meio e fim. Tampouco mostra claramente as mudanças temporais, convidando a que acompanhemos a historia desde o ponto de vista do seu personagem principal.

A tensão da narrativa prende a atenção de quem assiste. Não estranhe a repetição das cenas. Elas  mostram o que acontece na cabeça de pacientes com demências. Tampouco estranhe a repetição do apartamento, cuja imagem e peças aparecem  em todos os lugares do filme. No consultório, no próprio apartamento que vai mudando  e  no residencial para idosos.

Não  é por acaso que a filha  –  Anne  (Olivia Colman)  – aparece repetitivamente  com a mesma camisa azul, ou que  esteja sempre  cozinhando frango e preparando o jantar.  Na cabeça de Anthony, os dias se arrastam como se fossem  os mesmos.

O rosto  da filha – único elo do pai  com a sua historia pessoal – vai  sofrendo mudanças no decorrer do filme.  É a imagem da filha desaparecendo na memória de Anthony, embora ele ainda recorde  do nome Anne. Anne filha, Anne cuidadora familiar. Anne mãe.

Para quem convive ou já conviveu  com familiares com Alzheimer,  o filme mostra vários déjà vu, trazendo a tona aquela sensação de que você já esteve em determinado lugar ou fez a mesma coisa antes.  A história de Anthony  é recheada de  alterações da memória, de personagens que mudam  de fisionomia,  de repetição nas narrativas, como um eterno e angustiante  loop temporal.

Aparece  no esquecimento da  dor pelo desaparecimento  da filha, descaradamente predileta. No delírio. Na desconfiança, no medo de ser roubado e na fixação no relógio de pulso, único ponto material  de conexão com a realidade.

O  cotidiano de  Anthony é fragmentado,  assim como o filme. Não há  mais noção de tempo, de passado ou presente. As narrativas se fundem e o filme é exemplar em mostrar as dificuldades de compreensão dos pacientes de Alzheimer. Mesmo em caso de pessoas cultas, como o paciente  do filme. Aliás, esses são os enfermos mais difíceis porque se negam a aceitar ajuda, disfarçam a doença  e,  muitas vezes,  enganam cuidadoras  fazendo de conta que tomam as medicações.

Anthony  guarda coisas que depois não lembra mais onde estão.  Tem esconderijos. Vai perdendo o freio social e acredita que ainda vive no seu apartamento.  O mundo interior está desmoronando, assim como o mundo  a sua volta, enquanto o apartamento da filha vai se transformando.

A perda do freio social faz com que ele ofenda com frequência a filha cuidadora. Anthony chama  Anne  de burra e  compara a “ inteligência”  da filha com a  da mãe. Afirma  e reafirma sua predileção pela outra filha, por mais que Anne se esforce em agradar.

O Alzheimer faz  com  que  Anthony  não se dê conta de que magoa a única pessoa que cuida e está disponível.  E isso não é algo pessoal contra a filha. É uma das características  da doença e se repete na maioria das famílias.

Também é a falta de freio social que faz com que  Anthony  beba uísque  em dois goles. Que  se entusiasme pela jovem cuidadora contratada. Ou  que invente uma  nova profissão para se tornar mais atraente. (Quais desejos do passado do engenheiro perfeccionista  vêm a tona quando Anthony se apresenta  com uma nova profissão?)

As oscilações de humor presentes na doença de Alzheimer também aparecem no filme. As agressões verbais são frequentes ao se relacionar com as  cuidadoras profissionais contratadas por Anne. Elas são expulsas ou desistem do trabalho.

Anthony, nos raros momentos de  lucidez, sabe que algo está errado, mas não sabe o que é nem o está ocorrendo. Altivo, tenta reafirmar sua independência, dizendo que não precisa de nada nem de ninguém, principalmente de cuidadoras.

Ele, que sofre  alucinações,  que se perde  dentro do apartamento  (desorientação),  que desconfia  das pessoas que o cercam com ideias de roubo e perseguição e demonstra  confusão mental.

O tempo que conhecemos  não é o mesmo tempo do personagem. Se confundem manhã e tarde, ontem e hoje, passado longínquo e momento  presente. As cenas do  ex-marido de Anne, aparecem no tempo presente.  Assim,  a filha “seguirá  casada com um inglês”.

O final do filme é triste como as histórias da vida real  de quem convive com familiares com demência. Anthony volta ao principio de tudo, sem se dar conta de onde vive.

 

 

 

3 thoughts on “Meu Pai não é um filme para assistir comendo pipoca

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

*