À Queima Roupa, de Ana Maria Campos, conversa com Ives Gandra Martins, jurista e advogado. Confira:
Muito se falou sobre sua interpretação do artigo 142 da Constituição e os argumentos para um golpe de Estado no país. Seria possível derrubar o governo eleito com base nesse dispositivo?
Entre 1988 e 1998, Celso Bastos e eu comentamos toda a Constituição Brasileira em 15 volumes e aproximadamente 10 mil páginas. Os livros foram editados pela Saraiva. Coube-me a tarefa de interpretar o artigo 142 da Lei Suprema no 5º volume da série. Lá se encontra como o fiz, entendendo, que eram três as funções das Forças Armadas, ou seja: defender a Pátria, garantir as instituições e assegurar a lei e a ordem, a pedido de qualquer dos Poderes. Em 2014, em livro que coordenei com os Professores Carlos Valder e Dircêo Torrecillas, e escrito por inúmeros grandes juristas, homenageamos o Ministro Gilmar Mendes. No meu artigo para o livro reiterei a tríplice função das Forças Armadas, sendo que a terceira delas seria para, em eventual conflito entre os Poderes, e a pedido de qualquer deles, garantir a lei e a ordem.
À evidência, como posteriormente reafirmei em palestras, em programas de televisão, no meu Instagram, em declarações pelo Conselho Superior de Direito que presido, que esta função era para garantir e jamais para romper a lei e a ordem. Eventual atuação das Forças Armadas a pedido de qualquer Poder, em eventual conflito, teria que ser pontual e jamais para desconstituir Poderes.
Em artigo publicado no Conjur em 28/11/2022 reiterei esta minha interpretação — antes, portanto, da posse do presidente Lula —, algo que já tinha feito em sessão do Congresso Nacional para mostrar que a possibilidade de golpe no Brasil seria de 0, multiplicado por 0, dividido por 0 e somado a 0. Tudo o que foi dito a respeito da minha interpretação, que justificaria o rompimento da ordem representa uma monumental distorção do meu pensamento, que pode ser revisitado nas publicações mencionadas e nas diversas postagens em meu Instagram no segundo semestre de 2022.
O que significa dizer que as Forças Armadas são um poder moderador?
Na minha interpretação, quando escrevi em 2020 que, no cumprimento do artigo 142, as Forças Armadas seriam um Poder Moderador, foi exclusivamente para esclarecer que no eventual e quase impossível conflito entre Poderes, sua função seria apenas de pontualmente, equacionar o problema, nos exatos termos do que foi discutido na Constituinte durantes os debates, ocasião em que o Deputado Genoíno pretendeu que as Forças Armadas serviriam apenas para defesa da pátria, mas prevaleceu a solução do senador Fernando Henrique, admitindo as três funções, após consulta a todos os parlamentares e também ouvidos os militares. Basta-se procurar os debates constituintes e verificar-se-á que a posição de Fernando Henrique prevaleceu sobre a de José Genoíno.
O senhor avalia que houve uma tentativa de golpe no Brasil nos episódios que culminaram com a invasão e depredação dos prédios da Praça dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023?
Entendo que a invasão do dia 8 janeiro da Praça dos 3 Poderes, não foi diferente daquela invasão ao Congresso Nacional de membros do PT e MST durante o governo Temer, em que houve também depredação do Congresso, obrigando o presidente Michel Temer a decretar estado de emergência e convocar as Forças Armadas para desalojar os invasores e depredadores do CN. Em recente palestra na APLJ disse o presidente Michel Temer que perdoou os invasores, lembrando-se do presidente Juscelino Kubitschek que anistiou os revoltosos de Aragarça e Jacariacanga. A meu ver, não houve golpe de Estado porque sem arma é impossível ele ocorrer e os invasores da Praça dos 3 Poderes foram desalojados sem necessidade de um tiro. Houve uma baderna e como tal deveria ser punida ou perdoada, como fez Michel Temer.
Na sua opinião, como o senhor tem dito, não haveria golpe porque as Forças Armadas não topariam esse movimento. E se topassem? Haveria golpe?
Como professor emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército — ECEME até 2022, por 33 anos, em aulas ministradas para coronéis que no fim do ano poderiam ser guindados a generais de brigada, tinha absoluta certeza que não haveria nenhuma possibilidade de golpe de Estado, tendo reiterado esta posição exaustivamente, de agosto de 2022 até o fim daquele ano. Não respondo a segunda parte da questão por ser hipótese impossível. O que tenho dito é que um crime só existe se praticado. Tenho dito que o crime impossível não é crime, tendo para o próprio Correio Braziliense, dito que tentar assassinar alguém dando açúcar pensando ser arsênico, por se tratar de crime impossível, não poderia ser punível. A própria tentativa de crime seria só possível se medidas tivessem sido tomadas para tentativas e fossem fracassadas. Na hipótese, se realmente, o que admito como mero argumento, o Presidente Bolsonaro pensou em utilizar as Forças Armadas, pela absoluta impossibilidade das Forças Armadas aceitarem qualquer medida dessa natureza — algo que reafirmo pelos 33 anos que lecionei na ECEME, conhecendo a mentalidade daqueles coronéis que viriam a ser generais, estou absolutamente convencido de que não houve crime e nem tentativa de golpe, pois o instrumento necessário para o golpe que seria o uso das Forças Armadas revelou-se, como se esperava, de impossível utilização.
Como o senhor avalia a força que o Supremo Tribunal Federal adquiriu nos últimos anos?
Tenho uma profunda admiração por todos os juristas que compõem a Suprema Corte, tendo livros escritos com grande parte deles, respeitando-os como grandes intérpretes do Direito. Divirjo, todavia, deste protagonismo que implica invasão de competência de outros Poderes porque tendo participado de audiências públicas na Constituinte, discutido repetidas vezes com o relator da Constituinte em cujo Conselho de Notáveis da Confederação Nacional do Comércio que ele preside, no qual participo há mais de 30 anos, entendo que os constituintes quiseram exaustivamente proibir esta invasão, não permitindo, inclusive nas ações diretas de inconstitucionalidade por omissão, que o STF legislasse (103, §2º da CF /88), sobre outorgar ao Congresso Nacional a obrigação de zelar por sua competência normativa perante o Judiciário (49, XI). Como vínhamos de um regime no qual o Poder Executivo era dominante, decidiram os Constituintes dar competências claríssimas a cada Poder e obrigando-os a serem harmônicos e independentes (art. 2º), cada um nos limites que lhes foram outorgados. Ao Supremo foi dada a relevante função de ser guardião da CF/88, mas não constituinte derivado ou legislador suplementar.
Por que houve esse fortalecimento?
A sensação que tenho é de que no momento em que os partidos derrotados no Congresso Nacional passaram a recorrer ao STF e este passou a lhes dar guarida, transformando-se numa terceira casa de decisões legislativas, esse auto fortalecimento ocorreu. Quero deixar bem claro que esta minha posição sobre a Suprema Corte é de um velho professor de Direito Constitucional, que insiste em mostrar às poucas pessoas que o ouvem, o que ele viu, ouviu e participou repetidas vezes nos debates constituintes. Não há nenhuma avaliação que não seja estritamente de natureza constitucional, demonstrando sua posição que, numa democracia, deve e pode ser demonstrada quando as discordâncias ocorrem, sempre em alto nível e num debate civilizado.
O Supremo deve definir a quantidade de drogas que se caracteriza consumo próprio. Essa decisão é papel do STF?
Entendo que a matéria não é de competência do STF, mas do CN.
E o ministro Alexandre de Moraes? Críticos dizem que ele é muito poderoso e temido. Como o senhor vê isso?
Conheço o Ministro Alexandre de Moraes há mais de 30 anos. Temos livros escritos juntos, demos palestras e participamos de banca de doutoramento juntos, o que me permitiu sempre admirá-lo e citá-lo em meus livros e pareceres. Tenho, entretanto, algumas divergências quanto a algumas de suas decisões.
Sua esposa faleceu em decorrência da covid. Acha que a pandemia teve uma gestão adequada no governo Bolsonaro?
Minha esposa faleceu durante a covid tendo toda a assistência médica possível, em uma época em que as vacinas estavam sendo testadas. O governo Bolsonaro pagou e vacinou proporcionalmente muito mais pessoas no Brasil do que houve vacinação de governos relevantes na Europa e até mesmo nos Estados Unidos. Ora, se vacinamos, proporcionalmente às suas populações mais que os chamados países desenvolvidos, a resposta é que a gestão foi adequada.
E como vê a condução, no governo Lula, da epidemia de dengue?
Como todas as epidemias quando surgem, geram uma certa desorientação no início. O Governo Lula enfrenta no combate à epidemia, as mesmas dificuldades que o governo Bolsonaro sofreu na de covid-19.
Acredita que Jair Bolsonaro ainda voltará ao poder?
Como membro da Academia Paulista de História, sinto-me mais à vontade de interpretar os fatos passados, não sendo especialista em estudos antecipatórios. Desta forma, não sei dizer.
O ministro Gilmar Mendes disse que o desfecho do caso Marielle abre uma janela de oportunidade para o país desvendar a relação do crime organizado com o Poder Público. Qual a sua avaliação?
O assassinato em política é a forma mais espúria de se exercer o poder. Entendo que o fato terá que ser investigado à exaustão. Política se faz, numa democracia, com debate e diálogo. Jamais com assassinatos. Creio que uma investigação profunda a respeito é necessária para tentar eliminar todos os resquícios dessa forma de fazer política através de assassinatos. O Ministro Gilmar Mendes, portanto, tem razão em dizer que abre-se uma janela de oportunidade para saber-se a dimensão do crime organizado na política.