Por Ana Dubeux
“Pior impossível.” Assim o ex-secretário da Receita Federal Everardo Maciel qualifica a nova proposta de reforma tributária enviada, na semana passada, pelo governo federal ao Congresso. Profundo conhecedor da máquina pública — já ocupou por quatro vezes a secretaria executiva de ministérios, além da Secretaria de Fazenda do DF —, Everardo enumera os problemas da nova proposta.
“Eleva a carga tributária de quase todas as empresas, especialmente as de porte médio, e de muitas pessoas físicas, aumenta a complexidade, estimula a litigiosidade, afugenta investidores estrangeiros, induz ao aumento do endividamento das empresas, desorganiza todo o sistema empresarial brasileiro e inviabiliza setores, como o imobiliário e o de prestação de serviços”, explica, nesta entrevista à coluna.
Ele avalia, ainda, que não é o momento de fazer mudanças estruturais. “É hora de cuidar da pandemia e da retomada da economia, o que requer mais inteligência do que tenho visto”, diz. Também não acredita em um projeto suprapartidário, de união, para mitigar os efeitos dessa grande tragédia sanitária. “Isso seria desejável, porém é absolutamente inviável, considerado o atraso político do país, retratado pelo caudilhismo, anarquia partidária, corrupção política, etc.”
Everardo vive, assim como muitos brasileiros, o luto pela perda de amigos. “Não sei o que seremos quando voltarmos, se é que voltaremos, à convivência que tínhamos. Certamente, não seremos os mesmos. Torço para que sejamos melhores.”
Considera que a pandemia deixou claro o descaso da humanidade com a “segurança planetária”, que exige prevenção de pandemias e catástrofes naturais, atenção com o meio ambiente, correção das desigualdades entre pessoas e entre países, enfrentamento dos crimes contra a humanidade e o deslocamento abusivo de lucros dos grandes conglomerados transnacionais para paraísos fiscais, em desfavor, principalmente, dos países em desenvolvimento.
Como vê a perda de tantos brasileiros na pandemia?
Vejo com profunda tristeza. Perdi vários amigos. O mínimo que posso oferecer é minha solidariedade às famílias enlutadas.
Os governos deveriam ter mais céleres nas decisões?
Sei que se trata de doença nova, sobre a qual não se tem um verdadeiro conhecimento, mas graus variados de ignorância. A despeito disso, alguns governos reagiram com celeridade e eficácia, contrastando com outros que, por ignorância ou incapacidade administrativa, negligenciaram. No primeiro grupo estão, entre outros, Nova Zelândia, Coreia do Sul, Alemanha, Portugal e Estados Unidos, no governo Biden; no outro, Índia, Peru, Estados Unidos no governo Trump e, infelizmente, Brasil.
Que exemplo no mundo poderia ser usado no Brasil?
É difícil transpor experiências de um país para outro pela diversidade de condições econômicas e culturais, porém, se buscasse um exemplo, não hesitaria em lembrar as iniciativas tomadas pelo presidente Joe Biden, em termos de socorro às empresas e pessoas vulneráveis, adoção de um arrojado programa de investimentos e, sobretudo, pela atenção total dada à vacinação.
Como a pandemia pode reforçar os valores humanistas da sociedade e que ensinamento este momento nos deixa?
A pandemia deixou claro o completo descaso da humanidade com o que denomino segurança planetária, consistindo na prevenção de pandemias e catástrofes naturais, a atenção com o meio ambiente, a correção das desigualdades entre pessoas e entre países, o enfrentamento dos crimes contra a humanidade e, não menos importante, o deslocamento abusivo de lucros dos grandes conglomerados transnacionais para paraísos fiscais, em desfavor, principalmente, dos países em desenvolvimento. A opção excessiva pela competição e pelo unilateralismo esmagou a colaboração e o multilateralismo. Em consequência, sofrem a humanidade e o planeta.
O que mudou na sua neste ano de pandemia?
Tudo. O isolamento social restringiu os contatos com familiares e amigos e alterou completamente a forma como trabalho, ministro aulas e conferências, etc. Não sei o que seremos quando voltarmos, se é que voltaremos, à convivência que tínhamos. Certamente, não seremos os mesmos. Torço para que sejamos melhores.
A importância da união em torno de um projeto suprapartidário para mitigar os efeitos da pandemia nos próximos anos é possível?
Isso seria desejável, porém é absolutamente inviável, considerado o atraso político do país, retratado pelo caudilhismo, anarquia partidária, corrupção política, etc.
A quem interessa uma reforma tributária a menos de um ano meio das eleições?
Há os que querem, por oportunismo, aproveitar-se do quadro de confusão institucional para fazer valer interesses privados, e há os que querem utilizar a tributação com fins eleitoreiros. Em ambos os casos, uma indignidade que desrespeita as crises múltiplas decorrentes da pandemia.
Qual a sua visão sobre o fatiamento da reforma tributária?
Reforma tributária é um processo que decorre da necessidade permanente de ajustar o sistema tributário às mudanças nas circunstâncias econômicas, sociais e políticas. Não é, pois, um evento. Logo, será sempre fatiada.
Como avalia a possível recriação de um tributo nos moldes da antiga CPMF?
Não tenho restrições, em tese, à criação de um tributo sobre transações financeiras. A CPMF revelou-se um tributo eficiente, de baixo custo para o fisco e o contribuinte, sem litígios e nenhum efeito colateral perverso. É preciso ponderar, entretanto, que os tempos mudaram, e agora temos muitas inovações nas transações, a exemplo das criptomoedas, cujo tratamento tributário é ainda uma questão polêmica.
O atual modelo tributário inibe investimentos estrangeiros no país?
O que verdadeiramente inibe investimentos são a instabilidade institucional e a insegurança jurídica: a primeira resulta da inexistência de limites claros nas competências dos poderes e a segunda, das disfunções do processo, especialmente o tributário, e da precariedade da jurisprudência.
Simplificar o sistema, com a criação de um imposto único, seria a melhor solução? Muitas empresas reclamam do excesso de regras e da burocracia?
É simplismo imaginar que simplificação é juntar tributos. A excessiva burocracia é fruto de regras ultrapassadas. Trata-se, todavia, de questão estritamente administrativa e é, por essa via, que deve ser tratada. Quanto ao imposto único, é uma fantasia pobre que nenhum tributarista, em nenhum lugar do mundo, sequer cogita.
Qual seria, do seu ponto de vista, a reforma mais justa para a sociedade?
Reformas devem resolver problemas bem formulados. Se não se conhecem os problemas, nenhuma reforma é justa ou necessária.
Por que o Brasil é um dos países com carga tributária mais elevada e um dos que prestam os piores serviços à população?
Carga tributária e qualidade dos serviços públicos são questões distintas. Carga tributária está associada ao tamanho do gasto público, que não necessariamente é o mais adequado. Há que se discutir, no caso, o tamanho do Estado. Tributo não é preço público. É certo que os serviços públicos brasileiros estão muito longe de representar um padrão de qualidade, porém melhorar essa qualidade não se deduz do tamanho da carga tributária.
Em muitos países, sempre que paga uma conta, a pessoa sabe exatamente quanto daquele valor é referente à cobrança de imposto. Isso é transparência. O Brasil não deveria seguir o exemplo?
Não, essa é uma falsa questão. As pessoas querem saber o preço dos produtos que compram e não quanto é o percentual correspondente a impostos. Não sou contra o imposto por fora, mas essa não pode ser tida como uma razão a justificar uma reforma tributária. Alguém já deu alguma importância aos tributos expressamente destacados em uma conta de luz? Nenhum brasileiro aprecia a cobrança por fora das gorjetas em restaurantes, como ocorre em alguns países. Prefere o que acontece no Brasil, em que o valor da conta já embute a gorjeta. É mais prático, não é?
De que forma as mudanças nas regras tributárias podem favorecer a retomada da economia?
Depende das mudanças, mas essa não é hora de proceder a mudanças estruturais. É hora de cuidar da pandemia e da retomada da economia, o que requer mais inteligência do que tenho visto.
Que avaliação faz da reforma tributária encaminhada pelo governo ao Congresso Nacional na última sexta-feira? Vai haver elevação da carga tributária?
É uma proposta que eleva a carga tributária de quase todas as empresas, especialmente as de porte médio, e de muitas pessoas físicas, aumenta a complexidade, estimula a litigiosidade, afugenta investidores estrangeiros, induz ao aumento do endividamento das empresas, desorganiza todo o sistema empresarial brasileiro e inviabiliza setores, como o imobiliário e o de prestação de serviços. Pior impossível. É uma verdadeira contrarreforma tributária.