“Estamos vendo cada vez mais casos de ataques misóginos contra jornalistas”, diz presidente do Instituto Palavra Aberta

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Texto por Ana Dubeux publicado neste domingo (28/12) — Os casos recentes de feminicídio e agressões contra mulheres faz crescer a percepção de que a violência de gênero não é episódica, mas parte de um problema estrutural. Para a presidente do Instituto Palavra Aberta, Patrícia Blanco, romper esse ciclo exige ações coordenadas que combinem educação, segurança pública, assistência social, responsabilização e mobilização da sociedade. O enfrentamento ao feminicídio tem que ser abraçado por todos. Ao compreender melhor o ambiente midiático, passamos a entender que a retórica violenta e discriminatória pode começar de maneira localizada e aparentemente pontual e sem consequências, sob a forma de posts. Quando olhamos para mulheres que trabalham de forma exposta nas mídias, a situação também é crítica.

Qual o papel da escola na desconstrução de padrões de violência de gênero?

Episódios de violência como os vistos recentemente exigem ações pontuais e imediatas. Mas não podemos perder a chance de discutir caminhos mais duradouros para uma cultura de paz, em que crianças e jovens sejam preparados para uma postura mais saudável e responsável para atuar na sociedade de forma a compreender e respeitar a diversidade, pluralidade e igualdade de gênero.

A violência de gênero ou não — seja ela retórica (que aparece, por exemplo, em ameaças e boatos de atentados), seja física (com casos concretos de ataques) — só será efetivamente enfrentada a partir de um conjunto amplo de iniciativas, envolvendo agentes públicos, a sociedade de maneira geral e as escolas, em especial. A construção de uma cultura de não violência começa no ambiente familiar, mas precisa passar pela sala de aula, a partir da incorporação de temas ligados ao universo midiático e questões socioemocionais ao currículo.

De que forma a educação midiática ajuda a enxergar a violência de gênero como um problema estrutural, e não casos isolados?

A educação midiática tem muito a contribuir nesse sentido. Quando aprendemos a analisar criticamente mensagens de mídia, passamos a ter uma atitude questionadora e não mais passiva em relação a conteúdos que podem reforçar vieses e preconceitos, principalmente contra mulheres. Além disso, ao compreender melhor o ambiente midiático, passamos a entender que a retórica violenta e discriminatória pode começar de maneira localizada e aparentemente pontual e sem consequências, sob a forma de posts, piadas e memes desrespeitosos, que acabam banalizando discursos violentos. O perigo desse tipo de comportamento será maior quanto maior for o desconhecimento de como todos nós temos responsabilidades ao criar, compartilhar ou simplesmente engajar em determinados conteúdos.

Por isso, a escola precisa incluir em seu dia a dia novos letramentos que ajudem crianças e adolescentes a entender fenômenos que amplificam retóricas de ódio contra grupos da sociedade, sejam de mulheres ou qualquer outro grupo.

A falta de letramento midiático reforça o machismo estrutural? O ambiente digital reforça esse padrão?

Com certeza. A objetificação e a desumanização de mulheres são pilares estruturantes da sociedade em que vivemos. Se praticamente toda mulher já foi assediada na rua, na escola, em casa ou no trabalho, por que isso seria diferente no ambiente on-line? Ao contrário: a distância e o anonimato dão justamente mais liberdade para que homens ofendam e violentem, com textos, áudios e vídeos, mulheres conhecidas e desconhecidas. É claro que há um problema crônico de combate a discursos com preconceito de gênero e orientação sexual nas plataformas digitais. Mas também é necessária a compreensão de que esse é um problema social que se reflete no ambiente digital e a falta de letramento midiático reforça este comportamento.

O problema também ocorre com jornalistas?

Quando olhamos para mulheres que trabalham de forma exposta nas mídias, a situação também é crítica. Estamos vendo cada vez mais casos de ataques misóginos contra jornalistas mulheres nas redes sociais. Só nestes últimos dias, tivemos notícias de duas profissionais vítimas dessa violência — Malu Gaspar (O Globo) e Renata Mendonça (TV Globo), ambas simplesmente por exercerem o seu ofício.

O enfrentamento ao feminicídio deveria ser tratado como política de Estado, e não de governo?

Como política de Estado, mas não só. O enfrentamento ao feminicídio e a toda e qualquer violência contra a mulher tem que ser abraçado por toda a sociedade. Somente a partir de políticas públicas que integrem ações de educação, prevenção e punição efetiva é que conseguiremos avançar no combate a esta chaga que afeta a todos nós.

É possível combater o feminicídio sem enfrentar o machismo estrutural?

Acredito que se não enfrentarmos esta questão de forma sistêmica, só estaremos enxugando gelo. O problema da banalização da violência é uma questão mais ampla. Vivemos numa sociedade que infelizmente se acostumou com isso no dia a dia. Desde a retórica do “em briga de marido e mulher não se bota a colher”, até a culpabilização da vítima: “você viu a roupa que ela estava usando?”. Ou seja, o problema é muito mais profundo e está incorporado na nossa sociedade.

Como as redes sociais influenciam a percepção e a reprodução de relações abusivas? De diversas maneiras, entre elas, pela formação de grupos que convergem e compactuam com este tipo de comportamento. São homens que enviam áudios, montam imagens e acessam e divulgam pornografia, degradando individual e coletivamente a imagem de mulheres. Comentários em grupos de WhatsApp nada mais são do que conversas machistas de bar levadas para o ambiente virtual, onde têm potencial quase infinito de alcance. Os autores são homens de carne e osso responsáveis por suas falas e posturas. A violência de gênero aparece no discurso: em memes machistas, xingamentos a jornalistas, nudes de conhecidas e desconhecidas vazados e compartilhados e em tantos outros formatos que é impossível mensurar.

O que jornalistas e influenciadores precisam mudar ao tratar feminicídios?

Acredito que os jornalistas têm feito um bom trabalho ao expor os casos de forma bastante crítica e dando a dimensão necessária para comportamentos que não podem ser mais tolerados. O papel da imprensa é justamente este: de dar luz aos acontecimentos, cobrar uma atuação consistente do poder público e chamar a atenção da sociedade, contribuindo para que a mudança cultural aconteça. E os influenciadores digitais, detentores de grande massas de seguidores e diante do seu potencial de engajar essas milhões de pessoas precisam entender o seu papel e responsabilidade na busca por uma sociedade mais segura para todos. Que o exemplo do Felca seja seguido e se torne praxe na prática diária desses criadores de conteúdo.

Ronayre Nunes

Jornalista formado pela Universidade de Brasília (UnB). No Correio Braziliense desde 2016. Entusiasta de entretenimento e ciências.

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