Por Ana Dubeux
Mais de duas décadas e meia após o Brasil ter implantado a urna eletrônica, resultado de um esforço coletivo da Justiça Eleitoral, com apoio do Exército Brasileiro, entre outros parceiros, há um evidente trabalho em curso para o país ceder ao retrocesso. À frente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) na época, Carlos Velloso, ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF), tem defendido a eficácia do sistema. Mais do que isso, aponta os fatores que representariam um verdadeiro atraso no retorno do voto impresso.
“Quem vivenciou as eleições anteriores a 1996 sabe o quanto de fraudes que ocorria, o ‘mapismo’, cédulas falsificadas, aproveitamento de votos em branco e mazelas outras. O voto eletrônico acabou com tudo isso. Temos uma urna eletrônica que, com absoluta segurança, recebe e transmite a vontade do eleitor, e as eleições são apuradas em poucas horas”, diz.
Nesta entrevista à coluna, enumera, ainda, os mecanismos que representam a lisura do processo eleitoral brasileiro desde a implantação das urnas eletrônicas. “A urna não está sujeita à ação dos hackers, porque não está on-line. Os softwares são elaborados pelos técnicos do TSE, sob a fiscalização dos partidos. Seis meses antes das eleições, ficam à disposição dos partidos, do Ministério Público, da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), de entidades técnicas que se interessarem e dos cidadãos de modo geral.”
Apesar dos ataques às urnas, Velloso está confiante de que o Congresso vai rejeitar a volta do voto impresso, já declarado inconstitucional pelo STF. “Acho que muitos dos parlamentares ainda não conhecem bem os mecanismos de segurança da urna. E quando se inteirarem de tudo, vão constatar que o voto impresso, que tem sido apresentado como mais uma garantia de segurança da urna, não passa de um ledo engano” afirma.
Entrevista// Carlos Velloso
O senhor presidia o TSE na época em que a urna eletrônica foi implantada, em 1995. Como vê a tentativa de regaste do voto impresso?
Presidi o TSE no biênio 1994-1995. A urna eletrônica foi criada e implantada em 1995-1996. Em 1995, convoquei juristas, cientistas políticos e técnicos em informática. Constituímos, então, o que a mídia denominou de “comissão de notáveis”, dividida em cinco subcomissões temáticas presididas por um ministro do TSE: a) Código Eleitoral e organização da Justiça Eleitoral, ministro Marco Aurélio; b) reforma partidária, ministro Diniz de Andrada; c) reforma do sistema de voto — voto proporcional e voto distrital —, ministro Torquato Jardim; d) financiamento de campanhas eleitorais, ministro Pádua Ribeiro; e) informatização do voto, ministro Ilmar Galvão.
As subcomissões produziram trabalhos, que foram remetidos ao Congresso Nacional e aos presidentes da República e do Supremo Tribunal Federal. Designamos, em seguida, o grupo de trabalho composto, sobretudo, por técnicos em informática do TSE e dos TREs e um magistrado. As Forças Armadas, convidadas pelo TSE, participaram com integrantes de seus serviços de informática. O grupo de trabalho, que foi presidido pelo então secretário de Informática do TSE, Paulo Bhering Camarão, com base nas diretrizes firmadas pela subcomissão temática, programou o protótipo da urna eletrônica (hardware e software) e elaborou o edital de licitação com os pormenores técnicos e componentes da urna eletrônica.
A quem interessa desqualificar a segurança da urna eletrônica?
Esta é uma pergunta intrigante. É que a urna eletrônica está em funcionamento há 25 anos. Jamais ocorreu evidência ou indício de fraude. E o voto impresso, na verdade, faz retornar ao sistema anterior, com a mão humana participando da apuração. Quem vivenciou as eleições anteriores a 1996 sabe o quanto de fraudes que ocorria, o “mapismo”, cédulas falsificadas, aproveitamento de votos em branco e mazelas outras. O voto eletrônico acabou com tudo isso. Temos uma urna eletrônica que, com absoluta segurança, recebe e transmite a vontade do eleitor e as eleições são apuradas em poucas horas. Em artigos que escrevi, publicados recentemente, demonstrei que as urnas eletrônicas constituem garantia de eleições limpas.
Depois de mais de duas décadas de uso, que benefícios a urna eletrônica trouxe para o processo eleitoral?
Sim, mais de duas décadas de uso e sem qualquer evidência ou indício de fraude. As urnas eletrônicas, que o idealismo e a criatividade dos brasileiros, sob a liderança do TSE, tornaram realidade, acabaram com as fraudes. Os benefícios foram enormes. Fim das fraudes, fim do “mapismo”, apuração segura e rápida dos votos. Inexistência de impugnações e recursos causadores simplesmente de atrasos e insegurança nas apurações, em detrimento da democracia. Ademais, o voto informatizado representa o engajamento da Justiça Eleitoral na revolução dos computadores. As instituições, os homens e as mulheres têm que ser do seu tempo.
Quais são os mecanismos de segurança da urna, ou os sistemas de auditagem da urna?
São várias as etapas em que se assentam os mecanismos de segurança da urna eletrônica, o que foi demonstrado, didaticamente, pelo ministro Roberto Barroso, presidente do TSE. Em primeiro lugar, esclareça-se que a urna não está sujeita à ação dos hackers, porque não está on-line. Os softwares são elaborados pelos técnicos do TSE, sob a fiscalização dos partidos. Seis meses antes das eleições, ficam à disposição dos partidos, do Ministério Público, da OAB, de entidades técnicas que se interessarem e dos cidadãos de modo geral. A carga dos programas nas urnas é feita pelos TREs, 10 a 15 dias anteriores ao pleito, sempre com a fiscalização dos partidos.
E o que se faz em seguida?
No dia da eleição, o presidente da mesa imprime, na presença dos fiscais dos partidos, o boletim denominado “zerésima”, que comprova que na urna há zero voto. Esse boletim é entregue aos fiscais. O eleitor, ao votar, ao digitar o número do candidato, vê surgir na tela o nome, o partido e a fotografia do candidato. O eleitor confirma, então, o seu voto. Se os dados e a foto do seu candidato não conferirem, porque teria ele se equivocado, pode efetuar a correção, apertando a tecla de cor laranja, que começa tudo de novo.
Há ainda outros mecanismos de segurança ou auditáveis?
Sim. Terminada a votação, o presidente da mesa imprime o boletim da urna, que contém os votos dados a cada um dos candidatos. Cópia desse boletim é entregue aos partidos. Outra cópia é afixada na porta da seção eleitoral. O pendrive, criptografado, num envelope lacrado e assinado pelo presidente da mesa e outros membros, é levado ao órgão central da Justiça Eleitoral, ou a um posto mais próximo, onde é transmitido ao TSE para a totalização. Observem que os partidos já têm em seu poder esse boletim. Os boletins, à medida que chegam ao TSE, são postos na internet. Os partidos poderão conferi-los e certamente que já terão feito as suas contas, com base nos boletins de urnas que receberam imediatamente após a votação.
O voto impresso representaria um retrocesso? Deixaria as eleições mais suscetíveis a fraudes e a contestações na Justiça?
Representaria grande retrocesso. Seria o retorno à possibilidade de fraude, o que ocorria antes da implantação do voto informatizado. E pior: representaria quebra do sigilo do voto, sigilo do voto que constitui garantia de independência do eleitor. Os maus políticos que “compram” votos, corrompendo eleitores, poderiam pedir recontagem e conferirem se os eleitores realmente votaram nos candidatos para os quais os votos foram “comprados”. E mais: seria o restabelecimento do voto de cabresto. O Supremo Tribunal já declarou inconstitucional esse voto impresso. A emenda constitucional que está em discussão é violadora de cláusula pétrea. A Constituição Federal dispõe que não pode ser objeto de deliberação a proposta tendente a abolir o voto direto, secreto, universal e periódico. Não acredito que a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, que deve fazer o controle político, prévio, de constitucionalidade das propostas de lei e de emendas, cometeria tamanha inconstitucionalidade.
O voto impresso não seria mais um dispositivo de segurança da urna?
Essa é uma alegação dos que propõem o voto impresso e que tem convencido os que não conhecem os dispositivos de segurança da urna eletrônica. O voto impresso é desnecessário, desestabilizador, nocivo e caríssimo, anotam os especialistas em direito eleitoral, Hélio Silveira e Ricardo Penteado, no artigo mencionado, que acentuam as “possibilidades maliciosas de grupos dispostos a alegar discrepância entre o voto digitado e o voto impresso, apenas com o propósito de desacreditar o resultado da eleição ou com a intenção de anular seções eleitorais taticamente escolhidas. Imagine-se um movimento organizado com o objetivo de desestabilizar o próprio sistema democrático.” O voto impresso, na verdade, faz retornar aos atropelos do sistema anterior, além de violar o sigilo do voto, garantia de independência do eleitor.
Em meio a maior tragédia sanitária de todos os tempos, a Câmara deve aprovar o voto impresso. O Brasil virou refém do passado?
Não penso que isso vai ocorrer. Acho que muitos dos parlamentares ainda não conhecem bem os mecanismos de segurança da urna. E, quando se inteirarem de tudo, vão constatar que o voto impresso, que tem sido apresentado como mais uma garantia de segurança da urna, não passa de um ledo engano. Em artigo publicado no Estadão, o professor Miguel Reale Júnior demonstra o quanto de problemas que o voto impresso pode trazer, como, por exemplo, o voto de “cabresto” que os cientistas políticos e os bons políticos abominam. Hoje, 17/06, na Folha de S. Paulo, os advogados Hélio Silveira e Ricardo Penteado, respectivamente, presidente e consultor da Comissão de Direito Eleitoral da OAB-SP, especializados em direitos políticos e direito eleitoral, demonstram “a falácia do voto impresso.”