Crédito: Quinho
Na prática, o que se vê é a substituição do planejamento público por uma lógica clientelista, em que a distribuição de verbas obedece mais à geografia eleitoral
Esqueçam o baixo clero, pois a expressão que designava os deputados que não decidiam os rumos da política do país caiu em desuso. Não se fala mais nisso. Hoje, o baixo clero manda na Câmara, já que os velhos cardeais que sobreviveram eleitoralmente estão na planície. Outra geração de políticos assumiu o protagonismo, numa Câmara que funciona a partir de um grupo restrito de líderes, agora em torno do deputado federal Hugo Motta (Republicanos-PB). O rally regressivo e as trapalhadas nas votações do Congresso mostram as consequências.
A Câmara dos Deputados é um mosaico da sociedade, eis um lugar comum. Entretanto, deveria ser a vanguarda das mudanças em contraposição ao Senado, a Casa da moderação e da conciliação. A maioria dos deputados, porém, cuida mais dos próprios interesses privados, a liderança é fraca. A Câmara virou um mercado de leis aprovadas em comissões, sem passar pelo plenário; as mais importantes e polêmicas, com seus jabutis boêmios, aprovadas em votações relâmpago, em plenário, sem discussão nas comissões. Líderes de bancadas e presidentes de comissões se acertam em reuniões secretas e bola para a frente.
Frentes parlamentares são mais coesas do que os partidos. O lobby concentrado dos grandes negócios é muito mais eficaz do que o interesse difuso da maioria da sociedade. A ideia de “baixo clero” tornou-se obsoleta porque o poder foi redistribuído. A Câmara dos Deputados deixou de ser organizada em torno de lideranças programáticas ou figuras de projeção nacional e passou a funcionar como um consórcio de interesses paroquiais, mediado pelo controle direto de parcelas crescentes do Orçamento da União.
O Legislativo foi dominado por operadores do Orçamento, subsídios e armadilhas jurídicas, cuja força não deriva de ideias, votos ou liderança social, mas da capacidade de distribuir recursos públicos. Parlamentares com densidade política, trajetória institucional e protagonismo nos grandes debates nacionais foram empurrados para a irrelevância ou perderam as eleições. Em seu lugar, coadjuvados por influenciadores, extremistas e figuras folclóricas, consolidou-se uma geração de dirigentes cuja principal habilidade é organizar maiorias circunstanciais em torno de interesses imediatos, desalinhados das prioridades do país.
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A Câmara deixou de ser um espaço de mediação entre demandas sociais e projetos nacionais para se transformar num mercado de transações orçamentárias e privilégios fiscais. Esse deslocamento não é acidental, mas a expressão política perversa de uma lógica econômica mais profunda. A política é a economia concentrada. Em sociedades marcadas por forte desigualdade e concentração de renda, o poder econômico tende a capturar o poder político, moldando instituições, regras fiscais e prioridades do Estado em benefício de grupos organizados.
Cristalização
Essa captura foi institucionalizada por meio do Orçamento público. As emendas parlamentares, especialmente as impositivas, converteram-se no principal instrumento de reprodução dessa dinâmica, ao blindar eleitoralmente seus agentes, deslocando do Executivo — eleito para governar — a capacidade de planejar e executar políticas públicas de forma coerente. Mas, há efeitos colaterais: o desvio de recursos via superfaturamento e “intermediação onerosa” das emendas parlamentares, um iceberg investigado pelo Supremo tribunal Federal (STF), como no caso do Antônio Doido (MDB-PA), que jogou os celulares pela janela, dono de um BMW X3 avaliado em R$ 195 mil e de um Porsche 2015 de R$ 530 mil, cujo “faz-tudo”, o PM aposentado Francisco Galhardo, sacou R$ 43 milhões em dinheiro vivo entre 2023 e 2024.
Na sexta-feira, dia em que o Orçamento da União de 2026 foi aprovado pelo Congresso, ao amanhecer, a Polícia Federal (PF) realizou operações de busca e apreensão contra os deputados Carlos Jordy (PL-RJ) e Sóstenes Cavalcante (RJ), líder do PL na Câmara, em cujo flat a PF apreendeu quase R$ 470 mil em espécie dentro de um armário. São acusados de desviar verbas de seus gabinetes, prática recorrente nas casas legislativas. São as chamadas rachadinhas, com pagamentos a “operadores” de até R$ 99.999,99 para driblar a Receita e o Banco Central, seguidos de saques em dinheiro de R$ 9.999,99, no máximo, com objetivo de devolver a maior parte do dinheiro.
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O Orçamento da União cristaliza esse processo de desvio de recursos para formação de patrimônio e compra de votos. Ao reservar R$ 61 bilhões para emendas parlamentares, o Congresso amplia seu controle direto sobre recursos públicos em pleno ano eleitoral, com regras que aceleram a liberação do dinheiro antes do período de campanha. Trata-se de uma engenharia desenhada para blindar a reeleição dos atuais mandatários numa evidente distorção das regras do jogo e abuso do poder econômico.
Em nome da responsabilidade fiscal, reduzem investimentos em programas sociais e expandem o sistema de transferências pulverizadas, de baixa transparência e alto retorno eleitoral. É falsa a justificativa de que as emendas aproximam o Estado do cidadão, permitindo que recursos cheguem diretamente aos municípios. Na prática, o que se vê é a substituição do planejamento público por uma lógica clientelista, em que a distribuição de verbas obedece mais à geografia eleitoral do que a critérios técnicos de necessidade ou eficiência. Parlamentares agora são gestores paralelos do Orçamento, inauguram obras, financiam projetos locais e capitalizam esses investimentos, enquanto o Executivo perde capacidade de coordenação e o interesse público se fragmenta em milhares de iniciativas desconectadas.
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