Nas entrelinhas: Um tiro abaixo da linha d’água no deficit zero

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A ambiguidade criada por Lula não contribui para o sucesso da política econômica. O pior dos mundos será uma coalizão do Centrão com o PT para anabolizar as emendas parlamentares

Se a vida do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, já era dura com a meta de deficit zero, ficou mais difícil depois que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva abriu mão desse objetivo, jogando a toalha antes mesmo de começar o segundo tempo, porque essa meta era para 2024. Foi um tiro abaixo da linha d’água na blindagem da política econômica, cujo rombo Haddad tentou tapar, ontem, em entrevista coletiva, sem sucesso, porque não pode desdizer o presidente da República nem prometer o que ainda depende de o Congresso aprovar.

Haddad evitou responder sobre uma nova projeção da meta fiscal para 2024. Nos bastidores, a equipe econômica agora trabalha para conter o deficit entre 0,5% e 1% do Produto Interno Bruto (PIB). Haddad minimizou o desgaste da equipe econômica, tentou responder, mas o maior problema são as interrogações que continuam abertas ao mercado. “A minha meta está mantida”, disse Haddad. Esqueceu ou não quis falar sobre deficit zero, disse apenas que pretende antecipar medidas previstas para 2024 para buscar o equilíbrio fiscal.

Sustentar a meta de deficit zero era uma narrativa estratégica para conter a pressão por gastos do Congresso em ano eleitoral. E, também, sinalizar para o mercado a direção que se pretende seguir. Mesmo que a meta possa ser inatingível, abrir mão desse objetivo sinaliza frouxidão fiscal, o que já repercutiu no mercado, com alta dos juros futuros e do dólar. Também abre a porteira para a boiada das emendas parlamentares impositivas.

Deputados e senadores querem abocanhar uma fatia ainda maior do Orçamento da União do próximo ano, com a introdução da chamada “emenda Pix”, proposta do relator da Lei das Diretrizes Orçamentárias (LDO), deputado Danilo Fortes (PP-CE). Significa a liberação automática das verbas das emendas impositivas, sem intermediação do governo federal. No Congresso, a lei da gravidade é reduzir impostos e aumentar os gastos, mesmo que a conta não feche. Se ninguém puxar para cima, o equilíbrio fiscal despenca.

De certa forma, o presidente Lula jogou a equipe econômica aos leões. Haddad esteve com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), para debater a aprovação do PLP 136/23, de autoria do governo federal, que aborda a reposição de perdas dos estados e municípios decorrentes das mudanças do ICMS dos combustíveis (LCPs 192/22 e 194/22) feitas no ano passado, durante o governo de Jair Bolsonaro.

O PLP 136/23 consolidará a reforma do imposto interestadual, que passou a ser uniforme em todo o território nacional e a ter alíquota fixa (ad rem) para a gasolina e o etanol anidro (desde junho de 2023), e o diesel e o GLP (desde maio). O projeto tramita em regime de urgência, mas há divergências entre Fazenda, governadores, prefeitos e distribuidoras de combustíveis.

Haddad pretende incorporar as cláusulas do acordo firmado no Supremo Tribunal Federal (STF) entre União, estados e municípios, com mediação do ministro Gilmar Mendes, na ADPF 984, para repor o caixa das unidades federativas que perderam receitas em decorrência das LCPs 192/22 e 194/22. O montante a ser pago chega a R$ 27 bilhões até 2025. Os repasses mensais aos municípios, nos próximos três anos, somam 25% (R$ 6,75 bilhões) desse total.

Emendas anabolizadas

Outras medidas que dependem de aprovação do Congresso são a reforma tributária, que voltou para a Câmara, e a taxação das aplicações em offshores, que seguiu agora para apreciação do Senado. Havia uma expectativa de que a mudança na direção da Caixa Econômica Federal (CEF) reduzisse as dificuldades do governo com a Câmara, mas as declarações de Lula fragilizaram Haddad, que agora terá que negociar com os líderes em mais desvantagem.

Uma das razões do sucesso do Plano Real foi a blindagem da equipe econômica liderada pelo ministro da Fazenda, Pedro Malan, no processo de reformas administrativa, previdenciária e patrimonial, pelo presidente Fernando Henrique Cardoso e o então presidente da Câmara, Luiz Eduardo Magalhães (antigo PFL-BA). Blindagem política é vital para o sucesso de qualquer política econômica.

A grande incógnita são as reais motivações de Lula. Se foi um “sincericídio”, diante das dificuldades reais para alcançar a meta, suas declarações têm uma dimensão negativa que pode ser corrigida por ele próprio e/ou pelas ações da Fazenda. Se é uma mudança de rumo na política fiscal, em atenção à cúpula do PT e ao ministro da Casa Civil, Rui Costa, porta-voz de seus colegas na Esplanada, pode ser o começo de um grande desastre. Porque exacerbará as demandas de gastos e uma espécie de “meu pirão primeiro” generalizado.

Sabe-se que há no governo atores que divergem da política econômica e que gostariam que o ministro da Fazenda fosse um economista do PT, como o presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Aloizio Mercadante, ou o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega. Naturalmente, a ambiguidade criada por Lula não contribui para o sucesso de sua própria política econômica. O pior dos mundos será uma coalizão do Centrão com a bancada do PT para anabolizar as emendas parlamentares ao Orçamento da União de 2024.