Nas entrelinhas: Política externa virou eixo de disputa com oposição

Publicado em Brasília, Egito, EUA, Europa, Governo, Guerra, Israel, Itamaraty, Palestina, Partidos, Política, Política, Terrorismo, Violência

Os ventos também mudaram em Washington, porque a inação de Biden em relação a Israel começa a ter repercussão eleitoral e dividir as opiniões dos democratas

Por força de diversas contingências, que ainda estão em movimento, e da diplomacia pessoal do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que parece enrijecida, a política externa brasileira perdeu consenso nacional e se tornou um dos eixos de disputa da oposição com o novo governo, ao lado de outros temas como segurança pública, educação, saúde e costumes, para citar os mais em evidência.

No caso da política externa, o fato novo é a ida dos governadores de São Paulo, Tarcísio de Freitas (PR), e de Goiás, Ronaldo Caiado, a Israel para hipotecar solidariedade ao primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, com o qual posaram sorrindo, na terça-feira, num contraponto aberto à política externa brasileira. Nesta quinta-feira, ao lado dos governadores brasileiros, o ministro das Relações Exteriores israelense, Israel Katz, aproveitou a presença de ambos para novamente classificar como “antissemita” a fala do presidente Lula comparando a morte de civis em Gaza ao Holocausto. Os dois gestores visitaram Israel a convite de uma ONG e de empresários brasileiros.

Na quarta-feira, em evento de comemoração do aniversário do PT, Lula disse que a reação israelense na Faixa de Gaza se tornou uma “carnificina”, e voltou a afirmar que se trata de um genocídio contra os palestinos. Lula condenou o ato terrorista do Hamas e pediu a libertação dos reféns israelenses, assim como de palestinos presos. Não falou em Holocausto, mas reiterou o apoiou à iniciativa da África do Sul, que pediu uma investigação no Tribunal Penal Internacional sobre atos e medidas que possam constituir genocídio ou crimes relacionados. Lula é considerado persona non grata pelo governo de Israel.

Apesar disso, Tarcísio e Caiado foram a Israel na hora errada, porque o vento já mudou para Israel nos Estados Unidos e Europa. A revista inglesa The Economist, desta semana, corrobora essa avaliação: Israel alone (Israel sozinho), diz a manchete, cuja capa ostenta uma bandeira israelita desfraldada no deserto com as ruínas de Gaza ao fundo. Afora a infeliz citação do Holocausto, os fatos em Gaza estão corroborando a acusação de genocida feita repetidas vezes por Lula contra Netanyahu.

Segundo o analista político Thomas L. Friedman, editorialista do New York Times, em artigo reproduzido nesta quinta-feira pela Folha de S. Paulo, “devido à maneira como o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e sua coalizão extremista têm conduzido a guerra na Faixa de Gaza e a ocupação da Cisjordânia, o país está se tornando radioativo, e as comunidades judaicas da diáspora em todos os lugares estão cada vez mais inseguras”.

Países árabes

Friedman afirma que Israel, tendo como inimigos Hamas, Hezbollah, houthis e Irã, deveria contar com a simpatia de grande parte do mundo. “Mas não conta”, adverte. Segundo ele, ninguém pode negar a Israel o direito de autodefesa depois que o ataque do Hamas, em 7 de outubro, matou cerca de 1.200 israelenses em um dia. “Mulheres foram abusadas sexualmente; crianças foram mortas na frente de seus pais, e pais, na frente de seus filhos. Dezenas de homens, mulheres, crianças e idosos israelenses sequestrados ainda são mantidos como reféns em condições terríveis.”

Entretanto, “nenhuma pessoa justa pode olhar para a campanha israelense para destruir o Hamas, que já matou mais de 31 mil palestinos em Gaza, cerca de um terço deles combatentes, e não concluir que algo deu terrivelmente errado lá. Entre os mortos, estão milhares de crianças e, entre os sobreviventes, muitos órfãos. Grande parte da Faixa de Gaza é agora um deserto de morte e destruição, fome e casas em ruínas”.

Enquanto Tarcísio e Caiado estavam em Israel, o chanceler brasileiro, Mauro Vieira, nadava de braçadas nos bastidores da política do Oriente Médio. Nesta quinta-feira, esteve na Arábia Saudita, depois de passar por Palestina, Jordânia e Líbano. O dividido mundo árabe se uniu contra Israel numa cúpula extraordinária conjunta com os países islâmicos e pressiona o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden. Seu secretário de Estado, Antony Blinken, que esteve na Arábia Saudita e no Egito, anunciou que os EUA desejam aprovar no Conselho de Segurança da ONU um cessar-fogo imediato ligado à libertação de reféns.

A proposta deve ser votada hoje. É praticamente a mesma apresentada por Moçambique, quando o Brasil estava na presidência temporária do Conselho. Àquela ocasião, eram três mil o número de mortos em Gaza; agora, são mais de 30 mil, dois terços mulheres e crianças. Os EUA, um dos cinco países que têm poder de veto no Conselho de Segurança da ONU, vinham barrando as propostas de cessar-fogo. Mudaram de posição. Mas falta combinar com os russos.

Os ventos também mudaram em Washington porque a inação de Biden em relação a Israel começa a ter repercussão eleitoral e dividir as opiniões de sua base. A comunidade judaica dos Estados Unidos, que representa 51% dos judeus reconhecidos no mundo — Israel abriga 30%, mais 2% nos territórios ocupados da Cisjordânia —, deriva para a candidatura do republicano Donald Trump, enquanto Biden perde força na comunidade árabe e entre os democratas. Sabedor dessa situação, Netanyahu ignora os apelos de Biden, que não pode abandonar Israel à própria sorte. Mas tudo tem um limite.

Colunas anteriores no Blog do Azedohttps://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/