Nas entrelinhas: O caso Queiroz

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“O STF não é um terreno confortável de disputa para os enrolados. Foi-se a época em que o foro privilegiado era uma garantia de impunidade”

Ródion Ramanovich Raskolnikov é um ex-estudante que vive na miséria, em minúsculo apartamento em São Petersburgo. Acredita que está destinado a grandes ações, mas a miséria o impede de atingir todo o seu potencial. Por essa razão, conclui que nada seria moralmente errado se o objetivo fosse nobre. Isso o leva a matar uma velha que empresta a juros altíssimos e maltrata a sua irmã mais nova. Após assassinar a mulher, Raskolnikov entra em crise existencial, tem delírios febris.

Porfiry Petrovich, um dos responsáveis pela investigação do assassinato, confronta Raskolnikov diversas vezes, nunca revelando se ele é ou não suspeito do crime. A tensão abala ainda mais o comportamento do eex-studante, o que leva Porfiry a acusá-lo informalmente. Mesmo sem provas concretas contra ele, atormentado pelos remorsos, Raskolnikov acaba confessando. O protagonista de Crime e Castigo, o grande romance do escritor e jornalista russo Fiódor Dostoiévski, publicado em 1866 (ou seja, não tem nada a ver com “marxismo cultural”), é um arquétipo perseguido por todos os grandes autores de romances policiais. O livro é um grande ensaio filosófico, psicológico e social. Dostoiévski explora o lado psicológico e existencial de seus personagens de forma excepcional, no contexto de uma Rússia autocrática, moralista e culturalmente atrasada.

Anulação de provas
O caso do ex-assessor parlamentar Fabrício Queiroz é dostoievskiano. Amigo da família Bolsonaro, era homem de confiança do senador eleito Flávio Bolsonaro (PSC), ex-deputado estadual fluminense. Ninguém sabe exatamente o que ele fez, além das declarações estapafúrdias para explicar sua movimentação financeira e a dancinha no hospital em que se internou para tratar de um câncer no intestino na virada do ano. Seu jogo de gato e rato com o Ministério Público seria apenas mais uma chicana de bons advogados para protelar o trabalho da Justiça. E inspiração para piadas, máscaras e fantasias que divertem os foliões no carnaval carioca.

Ontem, porém, o caso Queiroz ganhou uma dimensão surpreendente. O ministro do STF Luiz Fux determinou a suspensão das investigações sobre Fabrício, atendendo pedido de Flávio Bolsonaro, que não é investigado. A decisão não significa a suspensão permanente da investigação ou a definição sobre em qual instância o processo deverá tramitar. Apenas interrompe a investigação, até que o ministro Marco Aurélio Mello analise o caso e decida se será aplicada a regra do foro privilegiado.

Em maio do ano passado, o STF decidiu restringir as regras do foro privilegiado. Após a decisão, passam a ser julgados pelo Supremo apenas deputados federais e senadores suspeitos de atos praticados durante o mandato e por crimes que tenham relação com o cargo. Ou seja, com base na jurisprudência vigente, a investigação contra o ex-assessor não obrigaria que o processo tramitasse no STF.

Queiroz é investigado pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro depois que o Coaf identificou movimentações financeiras consideradas atípicas em suas contas. No pedido, Flávio Bolsonaro também quer anular essas investigações, com o argumento de que as informações colhidas pelo Coaf estariam protegidas pelo sigilo bancário e fiscal e só poderiam ser obtidas pelo Ministério Público com base em decisão judicial. Sua ação aparentemente tem o objetivo de blindar Queiroz, mas pode ser um tiro pela culatra.

Qualquer político com cancha em Brasília sabe que o STF não é um terreno confortável de disputa para os enrolados. Foi-se a época em que o foro privilegiado era uma garantia de impunidade, não é um passeio pela longa Avenida Nevsky. Ao contrário, as últimas legislaturas foram generosas em situações nas quais o Congresso teve suas atribuições invadidas e seus caciques se viram de joelhos perante o Supremo. O ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha (MDB-RJ), por exemplo, foi afastado do cargo e está preso até hoje. Também não é um bom cartão de visitas para quem está chegando ao Senado, principalmente em meio a disputas pelo poder, porque significa uma vaga na bancada dos políticos reféns dos próprios colegas por questões de natureza ética.

Luiz Carlos Azedo

Jornalista

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