Nas entrelinhas: Novo cenário frustra a política externa de Lula

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O presidente brasileiro vive um dilema na escolha entre a audácia e a prudência ante a mudança de conjuntura mundial. Duas guerras impactaram a política e a economia global

“De quanto pode a fortuna nas coisas humanas e de que modo se lhe deva resistir” (Quantum fortuna in rebus humanis possit, et quomodo illis sit occurren dum) é um capítulo de O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, que trata das virtudes e da fortuna dos governantes. Tem mais a ver com as contingências do que com o acaso ou a sorte propriamente. “Muitos têm tido e têm a opinião de que as coisas do mundo sejam governadas pela fortuna e por Deus (…) Essa opinião se tornou mais aceita nos nossos tempos pela grande modificação das coisas que foi vista e que se observa todos os dias, independentemente de qualquer conjectura humana”, disse Maquiavel.

“Contudo, para que o nosso livre arbítrio não seja extinto, julgo poder ser verdade que a sorte seja o árbitro da metade das nossas ações, mas que ainda nos deixe governar a outra metade, ou quase”, concluiu. A releitura de Maquiavel nos faz refletir sobre as mudanças que ocorreram na política mundial desde a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que assumiu o poder com a memória de quem foi considerado “o cara” por Barack Obama e amplo apoio internacional, sobretudo depois do 8 de janeiro, quando se completou o diagnóstico das principais chancelarias do Ocidente de que o ex-presidente Jair Bolsonaro seria mesmo uma ameaça à democracia.

Desde então, Lula tentou ser um mediador da paz na Ucrânia, num flerte com Vladimir Putin, que o desgastou com os Estados Unidos e a União Europeia, sem sucesso. Depois da bem-sucedida operação para resgatar os brasileiros que estavam em Israel e na Faixa de Gaza e do excepcional desempenho do Brasil na presidência do Conselho de Segurança da ONU, em que conseguiu aprovar por ampla maioria uma proposta de trégua humanitária, vetada pela Casa Branca, deu um drible a mais ao apoiar a proposta sul-africana de condenação do Estado de Israel por genocídio. É uma posição assimétrica em relação ao tratamento dado ao Hamas, que o Brasil não considera uma organização terrorista, embora condene o ataque terrorista e os sequestros de israelenses de 7 de outubro.

É compreensível a indignação de Lula com o massacre de palestinos pelas forças armadas de Israel, em Gaza, por ordem de Benjamin Netanyahu, mas diplomacia se faz de forma pragmática, com um olho no presente e o outro no futuro. De certa forma, o presidente brasileiro vive um dilema na escolha entre a audácia e a prudência ante a mudança de conjuntura mundial. Duas guerras impactaram a política, a economia global e até o peso relativo do combate ao aquecimento global nas prioridades das grandes potências mundiais. O esvaziamento da COP28, realizada em Dubai, e do último Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, refletem as novas contingências.

Entretanto, o maior empecilho ao protagonismo global de Lula veio de onde menos se esperava: a América do Sul. Nesse sentido, a reunião dos ministros das Relações Exteriores da Guiana e da Venezuela, amanhã, no Itamaraty, em Brasília, cresce de importância. Intermediado pelo chanceler brasileiro Mauro Vieira, ocorre em meio à disputa pela região de Essequibo. A Venezuela afirma ser a verdadeira proprietária da área, de 160 quilômetros quadrados, cerca de 70% de toda a Guiana, que abarcam seis dos 10 estados do país. Rica em recursos naturais, um referendo convocado por Nicolás Maduro reacendeu a disputa territorial.

Cone Sul

Tudo o que não interessa ao Brasil é uma guerra na nossa fronteira norte, que atrairia para a Amazônia a presença militar permanente do Reino Unido, que manteve sua ex-colônia no Commonwealth (Comunidade Britânica de Nações). O encontro dos três chanceleres, em Brasília, nesta semana, antecede a reunião entre os presidentes da Guiana, Irfaan Ali, e da Venezuela, Nicolás Maduro, também no Brasil. Nesse encontro, o presidente Lula não pode fracassar como mediador, sob risco de desgastar sua projeção como liderança global.

As coisas também não andam boas no Cone Sul. Os presidentes do Uruguai, Lacale Pou, conservador, e o presidente do Chile, Gabriel Boric, socialista, não perdem uma oportunidade de marcar posição diferenciada em relação a Lula no plano internacional. E a eleição do novo presidente da Argentina, Javier Milei, foi um tremendo revés para a estratégia de fortalecimento do Brasil, via ampliação do Brics, na chamada política do Sul Global.

As negociações com o Paraguai em relação às tarifas de Itaipu não estavam maduras para um acordo quando Lula recebeu a visita do novo presidente paraguaio Santiago Peña, mais um mandatário conservador com quem terá que se relacionar. O encontro foi um fiasco dentro de casa. Nada disso é um empecilho que não possa ser administrado pelo Itamaraty, cuja diplomacia é reconhecidamente competente, mas a crise de relacionamento com os vizinhos não estava no horizonte de Lula quando assumiu.

O que pode mudar o cenário é um improvável acordo do Mercosul com a União Europeia, que ainda pode descer do telhado, com a aparente mudança de posição de Javier Milei, ao manter a Argentina no Mercosul.

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