O desprezo da sociedade e o sectarismo ideológico agressivo e virulento nas redes sociais ameaçam as instituições da democracia representativa
Uma das características do mundo em que vivemos é a mudança de paradigmas, ou seja, de modelo ou padrão. Há diferentes tipos de paradigmas — cartesiano, holístico, etc. —, ainda mais quando são abordados temas complexos. Na política, a maior mudança de paradigma em curso é a equiparação do fascismo ao comunismo como paradigmas autoritários e violentos, o que criou condições para a supremacia inequívoca das instituições liberal-democráticas nas sociedades ocidentais.
O problema é que esse tipo de ruptura não se resolve apenas no âmbito das elites pensantes, ou das instituições da democracia, passa também pela consciência dos cidadãos. Até a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética, havia uma diferenciação clara entre os regimes fascistas e comunistas, que havia sido sedimentado pelo desfecho da II Guerra Mundial. Agora não há mais, em razão das revelações históricas sobre crimes cometidos por esses regimes e, também, pelo do fato de que os cidadãos do leste europeu fizeram uma opção pela democracia liberal.
É aí que se estabelece um novo paradoxo. Nas democracias do Ocidente, em que pese essa clara hegemonia das ideias liberais, existe um mal-estar generalizado da sociedade em relação às instituições políticas da democracia representativa. E uma espécie de recidiva de ideias autoritárias, não apenas na periferia, mas também em nações que foram protagonistas do status político alcançado após a II Guerra Mundial, entre as quais Alemanha, França e Estados Unidos. Esse fenômeno também ocorre nos países periféricos, com o agravante de que esses sofrem ainda mais as consequências do aumento das desigualdades com a globalização.
Entretanto, é erro imaginar que a universalização da democracia está dada. Na verdade, ao contrário, vem sendo ameaçada, seja pelo desprezo de parcela considerável da sociedade às instituições da democracia representativa, seja pelo sectarismo ideológico agressivo e virulento nas redes sociais. Sem falar no terrorismo fundamentalista de inspiração religiosa, que não deve nunca ser subestimado.
Habeas corpus
É nesse contexto que o Brasil enfrenta as próprias contradições e mudanças de paradigmas. No momento, o palco dessa mudança no plano político é o Supremo Tribunal Federal (STF), cujo protagonismo em relação aos demais poderes em razão da Constituição de 1988 tornou-se inequívoco após a Operação Lava-Jato. Esse protagonismo, entretanto, parece que bateu no teto. Profundas divergências se instalaram na Corte, agravadas por um comportamento errático se considerarmos a sequência de suas decisões.
Uma dessas mudanças de paradigma na política brasileira é a questão da execução das penas para condenados em segunda instância, jurisprudência do Supremo que adotou um procedimento comum na maioria das democracias ocidentais, mas que contraria o princípio jurídica brasileiro de garantir o “transitado em julgado”, ou seja, a conclusão do julgamento em quatro instâncias, principalmente para crimes de colarinho branco. Num país de fortes tradições patrimonialistas de suas elites política e empresarial, essa jurisprudência é uma mudança de paradigma em relação ao histórico de impunidade dos poderosos.
Ontem, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiram adiar para 4 de abril a conclusão do julgamento do habeas corpus preventivo de Luiz Inácio Lula da Silva, impetrado pela defesa com o objetivo de evitar a prisão do ex-presidente. Os ministros decidiram uma “questão preliminar” sobre a pertinência do julgamento. Por 7 votos a 4, admitiram julgar o habeas corpus. Mas, quando essa decisão foi tomada, havia transcorrido mais de quatro horas de sessão e o julgamento foi suspenso. Por isso, por 6 a 5, os ministros decidiram conceder salvo-conduto para Lula não ser preso enquanto não se conclui o julgamento no Supremo, mesmo que o embargo de declaração impetrado pela defesa do ex-presidente no Tribunal Regional Federal da 4ª Região seja negado na próxima segunda-feira. Lula está condenado a 12 anos e 1 mês de prisão em regime fechado, com execução imediata da pena.