Nas entrelinhas: Imunização de rebanho

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“O Ministério da Saúde não combate a pandemia, deixou essa tarefa a cargo de estados e municípios, a pretexto de que o Supremo assim decidira, o que é uma interpretação falsa”

Parece piada pronta: o ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, nomeou para comandar o Departamento de Imunizações e Doenças Transmissíveis, responsável por todo o programa nacional de vacinas do governo federal, o médico veterinário Maurício Monteiro Cruz, formado no Centro Universitário de Desenvolvimento do Centro-Oeste, em Goiás, com mestrado em prevenção e controle de doenças em animais pela Faculdade de Agronomia e Veterinária da Universidade de Brasília. Cruz estava lotado na Diretoria de Vigilância Ambiental em Saúde do Governo do Distrito Federal e é especializado no controle da leishmaniose.

Como não lembrar da magistral interpretação de Disparada, de Geraldo Vandré e Théo de Barros, por Jair Rodrigues, um clássico da nossa música popular: “Mas o mundo foi rodando/ Nas patas do meu cavalo/ E nos sonhos que fui sonhando/ As visões se clareando/ As visões se clareando/ Até que um dia acordei/ Então não pude seguir/ Valente lugar-tenente/ De dono de gado e gente/ Porque gado a gente marca/ Tange, ferra, engorda e mata/ Mas com gente é diferente”. Sem nenhum preconceito, não se pode acusar o general Pazuello de incoerente. Afinal, o ministro interino está operando uma estratégia de “imunização de rebanho” para gerenciar a pandemia da covid-19 no Brasil. Veterinários são especialistas nisso e profissionais de grande importância para a saúde pública. Alguns são grandes sanitaristas.

O Ministério da Saúde não está combatendo a pandemia, deixou essa tarefa a cargo de estados e municípios, a pretexto de que o Supremo Tribunal Federal (STF) assim decidira, o que é uma interpretação falsa, pois a decisão da Corte foi apenas de que caberia aos governadores e prefeitos gerenciar a política de isolamento social. Tecnicamente, a imunização de rebanho não é uma estratégia, é o efeito de proteção que surge em uma população quando uma percentagem alta de pessoas contraiu ou se vacinou contra uma doença. Mesmo quem não foi vacinado nem foi infectado, acaba protegido da doença porque um grande número de pessoas já foi imunizada, constituindo uma barreira humana contra a propagação do vírus.

Estima-se que o índice de 95% de vacinação seja o ideal para que isso ocorra, preservando as pessoas que não podem tomar a vacina, como acontece com o sarampo. Com isso, o vírus acaba desaparecendo. Veterinários, por exemplo, têm grande experiência em vacinação contra a febre aftosa, que ataca os rebanhos. O selo de imunização contra essa doença é fundamental para a exportação de carne bovina. No caso da covid-19, como não se tem vacina ainda, especialistas discutem qual seria a percentagem de contaminados para quem não teve a doença deixe de correr risco de se infectar. Não há respostas ainda, mas alguns pesquisadores estimam o número entre 60% e 80% da população total.

Vacinação
O departamento comandado por Cruz é responsável pela organização do calendário de vacinas do país, as campanhas nacionais e a distribuição dos medicamentos aos estados, assim como por acompanhar a cobertura vacinal. Sua tarefa é, sobretudo, de planejamento e logística, porém, depende da chegada da vacina contra a covid-19. Apesar de o Programa Nacional de Imunizações ser considerado uma referência mundial, desde 2016 a cobertura vacinal no país não tem atingido as metas, nem mesmo nas vacinas infantis obrigatórias. Nenhuma das 10 vacinas obrigatórias para menores de 2 anos atingiu as metas de cobertura em 2019. Entre elas, a poliomielite, que teve cobertura de apenas 82,1% das crianças. Considerada, oficialmente, erradicada no Brasil desde 1994, a doença ainda exige vacinação porque o vírus circula pelo mundo.

Mesmo com as subnotificações, com 120,9 mil mortes — das quais 30 mil em São Paulo — e 3,8 milhões de casos confirmados, o Brasil ainda está muito longe de alcançar a imunização de rebanho. A média móvel de casos dá sinais de que está começando a cair, mas ainda está num patamar muito elevado, que registra uma média móvel, nas últimas duas semanas, de 875 mortes e 36 mil casos por dia. O grande destaque no combate ao novo coronavírus foi a resiliência dos heróis anônimos na linha de frente do enfrentamento à pandemia, muitos dos quais contraíram a doença e morreram, sobretudo profissionais da saúde. O desempenho do Sistema Único de Saúde, com todos os problemas, está sendo fundamental para evitar uma mortalidade muito maior. A ideia de que a pandemia está acabando é muito perigosa; os fatores decisivos para controlá-la ainda são a política de isolamento social e a autoproteção individual.

Luiz Carlos Azedo

Jornalista

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