Nas entrelinhas: Faroeste caipira

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“A tragédia de ontem pôs em xeque uma das principais pautas do governo Bolsonaro, a liberação da venda de armas de fogo”

Dois ex-alunos mataram sete pessoas na Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano (SP): cinco alunos, duas funcionárias do colégio; além do proprietário de uma loja próxima ao local. Não se sabe ainda a motivação do crime. Os assassinos, Guilherme Taucci Monteiro, de 17 anos, e Henrique de Castro, de 25 anos, chegaram encapuzados, abriram fogo e se suicidaram a seguir. Marilena Ferreira Vieira Umezo, coordenadora pedagógica, foi a primeira a ser atingida. O massacre é o maior já registrado em São Paulo. No Rio, em abril de 2011, 12 crianças morreram e 13 ficaram feridas numa escola de Realengo: um homem de 23 anos invadiu salas de aula atirando.

A tragédia de ontem pôs em xeque uma das principais pautas do governo Bolsonaro, a flexibilização da venda de armas de fogo. O senador Major Olímpio (SP), líder do PSL, da tribuna do Senado, tentou manter o eixo da discussão, com o argumento de que o massacre poderia ser evitado se funcionários e professores portassem armas, mas o assunto é leite derramado, como o debate sobre licenças ambientais depois da tragédia de Brumadinho. Não foi à toa a hesitação e demora do Palácio do Planalto para se pronunciar sobre o incidente, com uma nota tímida. O presidente Jair Bolsonaro demorou mais ainda a se manifestar pelo Twitter, no qual costuma apertar o dedo rapidinho.

A lógica de que armar a população de forma generalizada é boa para o lobby dos fabricantes de armas, mas não tem sustentação na realidade. Basta imaginar uma situação na qual moradores da Zona Sul do Rio de Janeiro trocassem tiros pela janela com traficantes da Rocinha, Pavão e Pavãozinho, Chapéu Mangueira e Dona Marta. Ou que, de fato, houvesse professores e alunos armados na escola, trocando tiros com os dois ex-alunos, numa espécie de faroeste caipira. Seria um retrocesso civilizatório.

Direitos humanos, democracia e paz são conquistas históricas da sociedade moderna. Homicídios impunes, agressões domésticas, brigas entre torcidas de futebol, violência no trânsito, violência policial, presídios superlotados, racismo e homofobia estão em contradição com isso. Não há correspondência entre a realidade social e a expansão dos direitos humanos na Constituição Federal de 1988. Urge um debate sobre essa questão que fuja às soluções fáceis e fugazes, que, às vezes, empolgam os eleitores, mas não são exequíveis.

Pacote Moro

É o caso da ideia de que ter uma arma em casa é a solução do problema de segurança pública. Na prática, o Estado está terceirizando o problema, porque perdeu o monopólio do uso da força e, agora, sucumbe ao pacto dos violentos. Está aí, escancarado, no caso Marielle Franco e Anderson Gomes, o problema das milícias no Rio de Janeiro. O debate sobre essa questão no Congresso está posto pelo pacote encaminhado pelo ministro da Justiça, Sérgio Moro.

O eixo original do pacote era a discussão sobre os crimes de colarinho branco, foco da Operação Lava-Jato, mas isso é como falar de corda em casa de enforcado, sobretudo a questão da criminalização do caixa 2 eleitoral, que está sendo decidida pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O eixo mudou para o endurecimento das penas por crimes de homicídio, latrocínio e tráfico de drogas e lavagem de dinheiro, onde é muito mais amplo o apoio na base parlamentar. Há uma noção de que aumentar o tempo de cadeia resolverá o problema da criminalidade, o que é outra discussão cabeluda, porque os presídios foram transformados em bunker pelo crime organizado.

Voltemos ao problema do retrocesso civilizatório. O poder coercitivo da lei só é plenamente efetivo na regulação da conduta dos indivíduos quando reforçado por regras morais compartilhadas por todos. Por isso, a construção de consensos atenua conflitos públicos e privados, permite a convivência de opiniões e a conciliação de interesses divergentes. O salto de qualidade é a passagem do reino da violência para o reino da não violência, ou seja, das normas morais e do Direito.